domingo, 24 de fevereiro de 2008

Sobre Davi de Golias

A parábola bíblica fala sobre um pequenino que enfrenta um gigante - e vence. Raro caso em que isso se sucede. A humanidade, entretanto, tem bons exemplos. Um deles, bem próximo. A criança, entretanto, um verdadeiro titã. Mas até a mais poderosa das criaturas mitológicas sucumbe perante o tempo.

Fidel Castro Ruz renunciou à liderança cubana após 49 anos. A manchete diz: "ditador renuncia em Cuba". Não, não se trata disso. Fidel Castro foi muito mais que um ditador, se é que podemos acusar alguém de ditador nos dias de hoje. Fidel foi, ou é, o espírito de Cuba, a representação do cubano.

Em 1959, Fidel assume o poder de uma nação quebrada. Cuba não possuía moral, dinheiro ou mesmo alimentos. Só carros, casas e hotéis luxosos americanos, trazidos vez ou outra, durante as férias de algum americano rico. Assim como prostitutas. 20.000 - só em Havana. Essa não é Cuba hoje. Cuba era dos cubanos. Restava a Fidel reconquistar aquilo que estava além da terra.

Em 1961, com a vitória esmagadora contra a invasão supostamente comandanda por J. F. Kennedy, o então presidente norte-americano, Fidel reconquistou honra e moral cubanos, honra de um povo que não tivera forças, até então, para reerguer-se e se impor. Fidel foi esta força. "Quando um povo enérgico e viril chora, a injustiça treme!", disse. No ano seguinte, a ameaça da guerra nuclear, o apoio dado pela URSS à pequena ilha, a base nuclear a 150 km da costa americana, a ameaça de Kennedy... Cuba sobreviveu. Sobreviveu - e vive bem até hoje -, inclusive, ao embargo continental que os EUA impuseram à então pequena e frágil economia.

Nos anos seguinte do governo, Fidel tratou de resolver as questões sociais. Não contava com o apoio do país que lhe usara durante tantos anos, nem com os colegas latino-americanos - todos vítimas de governos miltares, e, até certo ponto, nem mais com a URSS. Já hoje, Cuba ocupa posições surpreendentes nos ranking mundiais. É dos melhores países do mundo em farmacologia, música, esportes... Basta ouvir Buena Vista Social Club ou assistir às Olimpíadas - e comparar com o espaço geográfico. Sem falar na medicina preventiva - é a melhor do mundo! Basta dizer que Fidel agüentou 49 anos no poder, 10 presidentes americanos e 649 atentados - só os atribuídos à CIA, e ainda consegue abrir os olhos!

"Ler é uma armadura contra todo tipo de manipulação". Calcado na própria frase, Fidel investiu na educação do país. O quase total índice de analfabetismo cubano antes da revolução caiu para um número quase nulo. Todos têm direito, sem discriminação, de cursar ensino básico, médio e superior - é um país com excelente índice de graduados, além de estudar música e/ou praticar esportes.

Diz-se que Fidel é um ditador, um sangüinário. E quantos não foram mortos no Iraque ou no Vietnã? E os brasileiros não são tão diferentes se pensarmos na interferência no Haiti... Fidel fez o que foi preciso. E ditador, não é. Foi primeiro-ministro por 18 anos - o poder estava concentrado. Depois disso, passou a dividi-lo com o partido comunista e com organizações populares. "Qual governo se atreveria a deixar que a população mantivesse armas em suas casas e em locais prontos para serem usadas, especialmente em caso de invasão dos Estados Unidos, se o povo não estivesse representado?", disse o integrante da coordenação nacional do MST, João Pedro Stédile.

O cubano vive com o que lhe é necessário: hipoteticamente, um sabonete por semana, um par de sapatos por ano, três refeições por dia. Pode parecer pouco, mas não há cubano a quem lhe falte qualquer item básico à sobrevivênvia. Que cidadão que vive nestas condições, entretanto, não gostaria de ir para um mundo onde ele pudesse ter mansões luxosas, dois carros, jantar banquetes e usar relógios Rolex de diamante? É assim que um cubano pode se sentir em relação à maciça propaganda de todo o mundo que entra na ilha. E é avisado: "não despreze o seio que lhe alimenta, filho ingrato". Se insiste e sai, o sonhador encontra outra a realidade: a da fome e a miséria, a realidade que a propaganda capitalista não mostra. Tenta voltar, mas geralmente não é acolhido. É, agora, uma célula mutante. Se retornar ao sistema, pode gerar um câncer. A susceptibilidade humana àquilo que lhe parece melhor e mais fácil é enorme.

Outro dos clichês anti-castrismo diz: "ele tirou a liberdade". Pobre daquele que assim pensa. Critica um sistema sem reconhecer as falhas do próprio em que vive. Não percebe, assim, que o sistema capitalista possui mãos muito mais sagazes: enquanto o socialismo-real-castrista admite diminuições nas liberdades sociais, o capitalismo contemporâneo não só, com o perdão do trocadilho, castra algumas liberdades sociais como, e principalmente, cassa a liberdade indivual do ser. Não seja, tenha.

Repito, porém, que Fidel renunciou. Graças a isso - e esta é a parte ruim, a grande conquista - a revolução - está sob ameaça. Os EUA, mais uma vez, mostraram as garras. George W. Bush disse esperar que o anúncio da renúncia de Fidel Castro signifique o início de uma "transição democrática" em Cuba."Esse deve ser um período de transição, o começo de uma transição democrática para o povo de Cuba", afirmou Bush. Ele afirmou ainda que "os Estados Unidos vão ajudar o povo de Cuba a conseguir sua liberdade".

Desta vez, até a UE manisfestou-se. "Reiteramos nosso desejo de nos comprometermos com Cuba sobre um diálogo construtivo", disse um porta-voz do Comissário de Desenvolvimento da UE, Louis Michel. O que ele fez não foi em vão; os cubanos viveram uma realidade que parecia impossível, ainda mais depois de alguns erros vistos no governo stalinista.

Fidel anunciou, em sua carta de renúncia, que escreverá para o povo cubano, será, então, um soldado das idéias. A época dele de Davi passou. Cuba está órfã, e é o próprio Davi agora - que, infelizmente, terá que lutar contra um Golias extremamente maior e mais organizado, enquanto Fidel é só um espectro que assiste à cena com um olhar clínico, mas cansado e impotente. "Esta humanidade tem ânsias de justiça", disse. E que se faça justiça aos cubanos: deixem-nos serem como quiserem, embora a seguinte frase, também dele, caiba à situação: "quem tentar se apoderar de Cuba recolherá o pó de sua terra encharcado de sangue, se não perecer na contenda."

Raúl Castro, irmão de Fidel, concorrerá às eleições. O resultado é incerto; Fidel não permitia a influência norte-americana ou européia no resultado, mas não se sabe se isso será possível dessa vez. Todavia, Cuba hoje tem aliados na América do Sul. O futuro de Cuba é mais que nebuloso.

Fidel Castro é hoje o próprio Quincas Berro D'Água. O afastamento da linha de frente foi sua primeira morte. Agora só se sabe que a última será a morte física. Morre - ou não, fica mais imortal que nunca - a única lenda viva do século XX. E que seja absolvido pela história!

Para o interessado, leia a carta de renúncia.

PS: para quem achou o texto longo, recomendo assistir a algum discurso de quatro horas.

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