sábado, 29 de março de 2008

Ciberespaço e liberdade na escrita


Philipe Moura



O aparecimento da internet e de ferramentas de comunicação instantânea em seu seio são uma revolução em vários aspectos - alguns anos atrás, ninguém pensaria em tanta facilidade para estabelecer um diálogo com alguém que você sequer viu e está do outro lado do país. Também podemos considerar carbonária uma mudança que vem se tornando mais comum, um grande reforço aos elementos retóricos, antes inimaginável: o uso da estruturação frasal ideológica.


O que poderíamos entender como estruturação frasal? Adotemos, para o seguimento deste raciocínio, a estrutura frasal compreendendo fatores como iniciar frases com letra maíuscula, pontuação regular, palavras de uma mesma frase separadas apenas por um espaço, separação silábica se necessário. Não pretendo discutir o mérito de questões como concordância, regência e ortografia - deixarei tal ponto para os estruturalistas assumidos.


Hoje vemos que a estruturação frasal nesses instrumentos de comunicação não segue esses preceitos; seria tolice, por outro lado, crermos, partindo da faculdade da razão, que não há lógica na maneira como as sentenças são sistematizadas. Há lógica - mas a questão torna-se tão subjetiva quanto é subjetivo e discutível e imprevisível a lógica do pensamento individual, mesmo se considerássemos indivíduos ideologicamente parecidos pertencentes a um mesmo grupo, como estudantes de uma mesma sala, amigos ou familiares próximos. Da mesma forma que cada um procura pensar diferente, a tendência é que, dando-lhes liberdade, cada um tenda a escrever diferente.


Sendo o que foi posto acima verdadeiro, podemos observar nessa tendência uma face um tanto quanto interessante para estudo, mas, mais que isso, rica; se a tendência é que a frase - e por "frase", neste caso, entendamos a manifestação gráfica, já que estamos lidando com escrita, de uma idéia, que necessariamente possui sentido completo, é auto-suficiente - seja estruturada conforme a lógica individual, poderíamos dizer que esta estruturação frasal obedeceria a uma concordância ideológica com as nossas idéias, nossa forma de sistematizar/construir o pensamento antes de expô-lo, e não necessariamente concordância com as normas estabelecidos pela ABTN ou pela gramática ortodoxa.


Uma frase como a que fiz no parágrafo de cima (perceba que só coloquei um ponto nele) num meio de comunicação como o Msn seria quase impensável. A tendência seria fragmentá-la em várias idéias, ou separando pedaços da frase em linhas diferentes com o intuito de valorizar uma construção ou mesmo palavra dentro de cada parte da unidade frasal. De um jeito, de outro ou ainda de um terceiro, a forma de estruturar dependeria tão somente da nossa maneira de enxergar e preferir a construção da idéia. O que vale para a comunicação (e aqui assumimos uma postura preferencialmente funcionalista da gramática) é que ela seja alcançada, independente de que, para isto, eu tenha que me valer de elementos que escapam à normatividade, o que também explicaria o uso de imagens e/ou emoticons. O fenômeno estudado seria comparável à divisão de um texto em parágrafos, com a diferença de que comportaria, no referido caso, fragmentos de idéias com a intenção de ganharem maior relevância, ao invés de serem idéias completas, defendidas e fechadas.


É importante ressaltar que não é a primeira vez que surge um movimento que assuma a estruturação ideológica de frases como mandamento. Veja o caso abaixo:



Erro de português


Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.



O poema, de autoria de Oswald de Andrade, exemplifica bem a idéia que sustentamos. A poesia, principalmente a modernista, adota dois princípios similares: a negação da gramática estruturalista e a forma de criar os versos sendo completamente livre. Da maneira clássica, vemos somente três frases no poema: "Quando o português chegou, debaixo de uma bruta chuva, vestiu o índio.", "Que pena!" e "Fosse uma manhã de sol, o índio tinha despido o português". Percebe-se que o espaçamento de uma linha faz com que não se torne necessária a colocação de vírgulas, e, em outros casos, separa partes da frase que não necessariamente seriam divididas por pontuação. Além disso, vemos que o primeiro verso do poema não possui sentido completo, não constituindo, portanto, uma frase sozinho: precisa dos dois versos seguintes. Para o estudo literário, diz-se que quando a idéia de um verso está incompleta e continua no verso seguinte é constituído um cavalgamento. Não estamos defendendo que a estruturação frasal no ciberespaço siga o princípio do cavalgamento - até porque a linguagem utilizada neste não se utilize da função poética da língua, apenas que o processo é semelhante - e não é radicalmente inovador. Defendemos, entretanto, que o processo, antes mais restrito ao uso poético, já é observável no meio informal com bastante freqüência.


E por que, enfim, essa mudança mostra-se como uma novo aspecto da retórica? Não é difícil de entender: a partir do momento em que somos livres para escrever e estruturamos o pensamento, este é feito da maneira que nos é mais conveniente. Lidamos com a idéia da maneira como realmente gostaríamos de lidar: não é presa à necessidade de falar continuamente como no discurso oral, nem às necessidades normativa do discurso escrito regular. Isso faz com que vá se tornando mais fácil para nós trabalhar a idéia; transmiti-la torna-se também algo bem menos impedido, já que somos livres para enfatizar idéias e aproximar o interlocutor da sistematização do nosso pensamento quando deixamos que ele entre em contato mais direto com a nossa mais sincera forma de estruturar o pensamento numa frase - sem, novamente, esta estar presa aos requerimentos do discurso oral e do escrito normativo. A utilização de elementos multimídia como sons e imagens (emoticons), também disponíveis neste meio e compreendidos pelas possibilidades de estruturação, pode formalizar ou informalizar o discurso, dependendo da essência do recurso utilizado; um discurso agressivo pode parecer mais brando, se for nossa intenção que pareça, se, ao final dele, acrescentarmos alguma imagem que deixe transparecer leveza ou se façamos com que o interlocutor releve algumas palavras e irreleve outras.


Conclui-se, pois, a existência deste processo de (des)estruturação frasal, refletindo a tendência da liberdade na escrita no meio do ciberespaço, como sendo crescentemente flagrante. Como pontos positivos, vemos que é mais um recurso da retórica que passa a existir e o melhor relacionamento do escritor com seu próprio sistema lógico; como negativos, pode-se alegar que a não-uniformidade da estruturação frasal vá, no futuro, impedir a boa compreensão das idéias de um por outro, e que, portanto, é necessário que exista um sistema que delineie a construção de idéias. E o caro leitor, como se posiciona?

Um comentário:

Kondlike disse...

Posiciono-me de uma maneira mais conservadora, mas não completamente. Penso que há a necessidade de um maior policiamento pela parte dos sujeitos desse novo fenômeno, para que essa linguagem que conhecemos como normatizada e defendida pelo artigo 13 da Constituição Federal não entre em desuso de forma integral, mas vejo um cenário formidável para a criação de uma manifestação científica que norteie esse vendaval de mudanças que andam transformando a gramática como elemento ilegítimo do país.

É fácil para os que desconhecem as normas ou para os que não sabem aplicá-las manterem um posicionamento contrário ao meu. Considero um desastre acadêmico dar voz decisiva aos preguiçosos nessa problemática.