terça-feira, 2 de outubro de 2007

Eu voltarei!

No muro do cemitério ao lado do portão, com letras negras e desordenadas, estava escrito EU VOLTAREI!

Pergunto agora: será esta uma época propícia para os mortos voltarem? A cidade tão tumultuada, tanta poluição, tantas greves e os assaltos e seqüestros se multiplicando, nas penitenciárias há comandos do crime. Vulgaridade e violência num galope livre nas zonas da burguesia e da periferia onde os rios morrem e as árvores agonizam. EU VOLTAREI! aquele lá avisou, e agora me ocorre que ainda existem ameaças de guerrilhas, mas não foi suficiente tanta matança na guerra maior? Pelo visto não, porque os anos de guerra superaram e muito os tempos da pomba branca com o ramo verde no bico. Os jovens estão fugindo para outros países, sim, aqui tem aquele céu estrelado, a paisagem e o mar mas é lá longe que eles esperam realizar seus sonhos.

Um momento, eu falei no mar? Pois o mar em transe subiu e avançou enfurecido, Estou recuperando o que era meu! Vejo a natureza perdendo a paciência com o reinado do ser humano, o que fez Dom Policarpo, um santo da antiguidade, cair de joelhos lá em Smyrna e exclamar, Meu deus, em que século me fizeste nascer!

E a máquina de consumismo a todo vapor, difícil escapar da engrenagem infernal dos shoppings e das galerias, comprar, comprar, comprar... Nos intervalos, comer para voltar a comprar porque tudo é ali mesmo por perto, não perder o ritmo. Tempo é dinheiro! repete o funcionário de um banco que batizou o filho com o nome de Dólar, mas quando o Dólar está em baixa fica o apelido, Dodô.

A moda é não resistir às três palavras soberanas, Denúncia, Evento e Imperdível. A fúria das denúncias políticas cresceu tanto que elas já quase perderam a importância, o povo acabou ficando assim anestesiado, lê, escuta e esquece porque depois não acontece mesmo nada, denunciantes e denunciados afundam no buraco negro da memória nacional.

Evento é outra palavra flutuando na ventania, tudo é evento, a festa e o espetáculo, o batizado e a morte, até a morte? A morte sim, não esquecer a jovem conversando com a amiga no elevador, Hoje não vou ao cinema porque surgiu um evento, morreu meu tio e o enterro é agora.

Imperdível, eis aí outra palavra que reina na máquina publicitária, é imperdível aquele carro, qual? O carro que vem com um terapeuta embutido, o motorista entra, fecha a porta e ouve a voz que vem do painel aceso, O problema é de origem real ou existencial? Se for real, de natureza física, aperte no painel o botão vermelho.

EU VOLTAREI! ele escreveu no muro do cemitério. Pergunto agora se por acaso esse desertor é negro. Se for negro quero lembrar que ainda vigora o preconceito, disfarçado mas atuante, onde o emprego? Onde a escola? E não adianta tingir o cabelo de louro porque o preconceituoso tem olho vivo, Todo brasileiro é mestiço senão no sangue nas idéias, escreveu Silvio Romero há cem anos.

O desertor mulher também não irá encontrar um clima ideal porque os homens perderam o respeito pelo sexo considerado inferior apesar das conquistas, algumas reais e outras ilusórias. Casadas, amasiadas e solteiras andam levando bordoada por dá cá aquela palha. Repletas as delegacias da mulher com olho roxo e nariz quebrado. Tirante aquelas que não dão queixa, segundo o noticiário uma mulher no Brasil é espancada a cada quinze segundos.

Esperar pelo Natal que seria uma época ideal para essa volta anunciada? Mas o Natal já vem se misturando ao Carnaval, os viciados consumistas não podem pensar em meditação ou recolhimento com todas as lojas fazendo ofertas extraordinárias.

Um chefe de família da classe média que escapou de um recente assalto chega em casa e respira tão aliviado, a penumbra da sala com o gato cochilando na almofada com seu mistério e o cachorro sorridente e sem mistério pedindo um afago. Então o homem afunda na poltrona e sonha com uma música singela do tipo das toadas sertanejas, que não exigem maior atenção, ou quem sabe a leitura de um livro não solicitante, daqueles que a gente lê pulando as páginas sem remorso. Fecha os olhos, a trégua. Então entra a mulher aos gritos, A festa já começou e você desse jeito, já fez a barba? E vem o filho adolescente, liga a televisão no volume máximo e lembra, E o dinheiro, pai? Hoje tem balada!

EU VOLTAREI! o futuro desertor avisou no muro. Preciso ainda lembrar que um conceituado vereador já entrou com um importante projeto de lei, acabar com os cemitérios! Com tempos assim tão difíceis e esse desperdício de terra, tudo anti-higiênico e antiquado, lamenta o político interessado numa transação imobiliária. Chega de sentimentalismo! ele queixou-se a uma jornalista. Meu plano é construir nessas terras esvaziadas um espaço cultural ou estacionamento, qual a sua opinião? O jornalista sacudiu a cabeça e pensou com seus botões, Nesse andar, antes que venha a ordem de despejo é aconselhável que os falecidos comecem a sair desde já levando o próprio caixão na cabeça.

Refletindo melhor creio que vivos e mortos não devem se preocupar, afinal, são tão numerosas as pilhas de processos urgentes aguardando solução, montanhas de processos, montanhas! E esse projeto de lei é tão polêmico, certamente alguém recorrerá ao Poder Judiciário, mais tempo paralisando a papelada, e daí? Então é esperar que a montanha vá baixando, baixando e quem sabe daqui a mil anos?...

EU VOLTAREI! ameaçou o desertor mas quem passar hoje por aquele muro já não lerá mais nada.

Lygia Fagundes Telles, no livro Conspiração de Nuvens.

Um comentário:

Anônimo disse...

eehauheuehauhuaehaeu! mto bom! esse texto eh otimo! \o/