segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Do futuro da tentativa de recriar o homem

Tentam e continuarão tentando os doutores da ciência reproduzir um ser humano em laboratório. Mas, é fácil perceber, falharão sistematicamente por séculos. Não descobrirão de que o homem é feito até que parem de se afastar dele. E ora se propõe outra visão: a de que um homem é feito da aglutinção (inter)subjetiva dos seus afetos.
Se um dia de fato o perceberem, não tardarão a usar seus métodos positivos. No primeiro experimento, reunião cuidadosamente, depois de demorada e detalhada pesquisa, todos os afetos de um dito indivíduo. Expremerão todos, sugando-lhes o que lhes for possível extrair; tudo porão num grande liquidificador, do qual sairá algo mais ou menos próximo do homem que tentavam reproduzir. Não sairá obviamente o mesmo. O primeiro erro fora tratar-lhe "indivíduo", mas não cabe aqui discorrer mais sobre isso. Mas, igualmente importante, tratou-se de objetivar um espaço indescritível, inenarrável, (inter)subjetivo. Reconhecê-lo é uma experiência mística. Conviver com ele, uma experiência mágica.
Com efeito, partindo da premissa de que é um ser a união dos seus, eliminá-los poderia levar à descaracterização daquele. É assim com quem perde um amigo, um pai, perde parte de si; aquele que sente saudades se sente incompleto. Mas esse movimento de incorporação é mútuo: faz-se, mas se é feito. Um ser que de vários é constituído também haverá de constituir vários; de modo que, se se tira um, parece afetar toda a cadeia - quiçá romper o equilíbrio. Nesse ponto, diria, está a mágica. Assim, o apaixonado encontra em si mais vida que antes - e há certamente de propiciar o mesmo. E dê muitos séculos mais para a ciência.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Exoesqueleto

- O que você está olhando?
Era aquele besouro que vinha voando em alta velocidade, e, devido a um erro qualquer de percurso, aterrisara mal, tendo caído emborcado no chão, que consumia minha atenção e meus pensamentos. Não era tão grande, era amarronzado, cor-de-fezes, de onde, na verdade, parecia ter acabado de sair. Se contorcia, balançando de um lado para o outro, mas não conseguia se virar. Terminei esquecendo de responder, mas meu olhar compenetrado me acusou.
- É isso que te faz divagar? É mais interessante que a história que eu tava contando? Neguei. Embora de fato fosse. Senti-me vivendo uma narrativa de Kafka. Talvez revivendo. Penso que nossos exoesqueletos nos fazem parecer todos um pouco besouros, ou besourescos - não é a melhor das qualidades, mas o humano também não parece ser o melhor que a teoria evolutiva poderia apresentar. E, afinal de contas, os besouros passaram centenas de milhares de anos na linha evolutiva e ainda não conseguiram superar o problema do formato do casco que o impede de se virar, ou talvez a falta de força para inverter a realidade que se encontram. Afinal, tudo seria apenas um problema de perspectiva - definir o que seria enxergar de cabeça para baixo -, não fosse o problema de não conseguir andar. Assim, virar-se de volta era necessário, ou seria a morte. E, ainda assim, é incontável a quantidade de besouros que morrem a cada instante devido a não conseguir se desvirar.
- Mais interessante que a Flavinha?
Por que eu tinha que ser interrompido enquanto estava pensando?
- Por que você não faz algo?
- Como o quê?
- Sopra.
Não era má idéia. Assoprei com força, pensando em ajudar. Ele se levantou, mas a continuidade do sopro e sua força fizeram com que o inseto se desvirasse, mas tornasse imediatamente à posição anterior.
- Assim que se sopra, olha.
A corrente dessa vez criada permitiu que ele se desvirasse. Olhei a situação toda. Sem hesitar muito - e igualmente sem cerimônia -, eu o pisoteei.
- Por que fez isso?
Disse não saber. Mas, de verdade, também acho que nossos exoesqueletos escondem dentro de nós o pequeno deus que cada um quer ser.