segunda-feira, 30 de julho de 2007

Eletric Funeral



Ok, ok, os fãs de jazz vão gostar dessa. Quem está pronto para morrer levanta a mão!

É, quase ninguém levantou a mão. Na verdade, só aquele cara estranho que sempre está por ali quando você menos espera. Ainda assim, fiquem todos cientes: você pode ter um funeral regado a jazz! “You cry when you are born, so REJOICE WHEN YOU DIE!” é um dos lemas do jazz funeral de New Orleans.

O “jazz funeral” começou com a fusão de duas culturas, basicamente: a européia e a africana (assim como o próprio jazz, em si). A européia contribuiu no sentido de que sempre teve o costume de fazer marchas musicadas em funerais de militares (lembrar de ouvir Chopin, Mendelssohn e Beethoven), e a prática foi transmitida aos americanos, que continuaram a praticando até depois da guerra civil. Por coincidência, nessa época houve um surto de bandas de metais que se apresentavam em uma série de coisas como paradas, festivais de dança e casamentos. Como foram se tornando populares, foram cada vez mais sendo convidadas para tocar em eventos tais como funerais.

A cultura africana, por sua vez, teve outra contribuição peculiar e talvez mais importante. Antes, preciso dizer que nas culturas do oeste africano o sistema de crenças, de modo geral, é monoteísta, e prega uma estrutura hierárquica que põe deus acima de tudo, e, em seqüência, espíritos, homens, animais e plantas. Neste sistema, a morte não representa o fim de uma vida, mas a transição para um plano de espíritos ativos que providenciará almas para as gerações seguintes, e estes espíritos teriam maior autoridade que humanos e seriam capazes de ter controle sobre os vivos. A morte seria a triunfante redenção do status espiritual e liberação do ser de sua triste situação. Logo, ritos funerais simbolizam, para eles, o clímax da vida de um indivíduo. Além disso, quando os africanos foram levados para os EUA, eles passaram a acreditar que, com sua morte, seriam levados de volta à sua terra. Aquela também passou a ser vista como libertação da escravidão e opressão.

Enquanto os franceses nos EUA saíam às ruas tocando os metais, os africanos celebravam seus deuses escondidos. Não demorou para que as duas culturas se fundissem.

Num “jazz funeral” tradicional, a banda se encontra na igreja ou casa funerária de onde cerimônia será conduzida. Depois das obrigações da cerimônia, o caixão geralmente é transportado para o cemitério por uma carruagem e cavalos enfeitados com flores, seguido diretamente pela banda, familiares e demais amigos e colegas. Ao som de músicas e hinos, a “procissão segue”. Chegado ao local de enterro, todos se despedem, o finado é enterrado, a banda conduz a procissão para fora do cemitério sem tocar. Quando alcançam uma distância respeitável do lugar, o trompetista principal sopra um riff de duas notas preparatórias. Os percursionistas, então, começam a tocar uma marcha conhecida como “segunda fileira”, que tem o nome da fileira dos que ficam, na procissão, atrás das fileiras de amigos, familiares e outros celebrantes que seguem os membros da banda, que, por sua vez, estão produzindo um som mais alegre e comemorativo. O “mestre” da cerimônia, também conhecido como “grand marshal”, dá o tom para a banda e os membros da segunda fileira, que também dançam com guarda-chuvas coloridos abertos, anunciado a notícia: “uma alma voltou para casa”.







Há uma curiosidade. Muitas vezes, turistas pela região entram na festa: "OOH! A PARADE!". Quando vêem o caixão, muitos deles pensam "que horror!", outros apontam... E eles só respodem: "calma, é assim que nós nos despedimos dos nossos músicos".


Louis Armstrong (que também recebeu um jazz funeral) comenta sobre o prório (se não sabe inglês, aperte o botão de "skip"): " And, speaking of real beautiful music, if you ever witnessed a funeral in New Orleans and they have one of those brass bands playing this funeral, you really have a bunch of musicians playing from the heart, because as they go to the cemetery they play in a funeral march, they play "Flee As a Bird," "Nearer My God Today," and they express themselves in those instruments singing those notes the same as a singer would, you know. And, they take this body to the cemetery and they put this body in the ground. While he's doin' that the snare drummer takes the handkerchief from under the drum, from under the snare, and they say "Ashes to Ashes" and put him away and everything, and the drummer rolls up the drum real loud. And, outside the cemetery they form and they start swinging "Didn't He Ramble." And, all the members, the Oddfellows, whatever lodge it is, they are on this side. And on this (other) side is a bunch of raggedy guys, you know, old hustlers and cats and Good-time Charlies and everything. Well, they right with the parade too. And, when they get to wailin' this "Didn't He Ramble," and finish, seems as though they have more fun than anybody, because they applaud for Joe Oliver, and Manny Perez, with the brass band, to play it over again, so they got to give this second line, they call it, an encore. So, that makes them have a lot of fun too, and it's really something to see.".


Diz um site tradicional sobre o jazz funeral que é para aqueles que desejam ter um é mais uma questão de estar no lugar certo na hora certa. “Esperamos ver poucos desses no futuro. Nós precisamos guardar para os Grandes que ainda estão vivos”.



Para os que ficaram curiosos, aqui um vídeo-exemplo:

Jazz Funeral de Hellen Hill

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Uma Breve História da Religião - Parte I

Etimologia:
Embora seja bastante controverso, o termo religião pode ser interpretado, do latim, re (novamente) + ligare (se ligar) como uma forma de unir a relação entre o homem e deus.
Tornando a religião, essencialmente, culto de um para outro.

Definição:
Segundo o Aurélio:
  • 1. Crença na existência de força ou forças sobrenaturais;
  • 2. Manifestação de tal crença pela doutrina e ritual próprios;
  • 3. Devoção;
Disso partimos em busca do conceito de crença, e encontramos algo intimamente ligado à fé. Essa última que pode ser interpretada como uma resposta de forma “inocente” àquilo que nos é superior, sobrenatural ou inexplicável (mesmo que apenas um intervalo de tempo). A crença por si é uma resposta sistematizada da fé. Onde são feitas, metodicamente, as atribuições, origens e explicações (Mitos, do grego mythos = fábulas; geralmente explicações atribuídas aos deuses, sendo esses seres ativos que definiam o destino da vida na terra) para as respostas metafísicas e existencialistas, empregadas por qualquer massa cinzenta, quando se depara com algo que lhe quebra a habitualidade dos acontecimentos (um milagre, por exemplo). Partindo da premissa que a religião é baseada na crença, a própria pode ser tomada como a imposição e aceitação de dogmas, “doutrina e ritual próprios”.
Porém, o estudo da religião, é em primeiro lugar, uma filosofia engajada no questionamento crítico, a fim de estabelecer uma tese, baseado em provas efetivas, que assemelham-se às respostas especulativas à cerca do mundo e suas origens para melhor ser aceito pelos seus adeptos. Muito embora, na maioria das vezes esse estudo seja colocado de lado (e retomado pelos filósofos). Sobra então aos religiosos, seguir com o “único” objetivo da dita religião: a doutrinação.Os muçulmanos consideram a Caaba, ao centro da grande mesquita de Meca, o lugar mais sagrado da Terra

Pregação:
Seguindo o raciocínio, quando a religião deixa de lado o questionamento à cerca de uma verdade, e passa a propagar apenas idéias já feitas e fundamentadas nos seus próprios dogmas, essa vai ganhando força na sua essência, que é a devoção em cima da fé.
Quando se é aceito uma premissa, vinda de um pregador, ou doutrinador, como verdadeira, e se é convertido, nomear-se-á como prosélito (do grego prosélitos = aderente; ato que consiste em conquistar aderentes à doutrina). Como já foi dito, a religião, como um grupo de dogmas, geralmente se torna tema somente de doutrinação e proselitismo.
“O doutrinador, que faz proselitismo, não mais se propõe a rever sua posição; convencido de uma doutrina, a propaga, com vistas a obter prosélitos. Ele interpreta a si mesmo como apóstolo de uma verdade. Quando pesquisa apenas procura novas provas para esta sua verdade. Quando discute, não mais busca a verdade, mas quer apenas refutar seus adversários.” (Enciclopédia Simpozio)
Com isso, temos a origens das pregações em massa, quando essa aceita as palavras do apóstolo como verdadeiras, sem se questionar, uma vez que a massa não tem erudição suficiente. Logo um pregador estuda a retórica (podemos comparar a religião à política, nesse aspecto), treina a demagogia, “procura novas provas para esta sua verdade” a fim de persuadir seus ouvintes, e impondo seus dogmas como verdadeiros, ganha a adoração dos mesmos.
Porém, quando se prega às massas e quebra-se a liberdade de consciência, esses tornar-se-ão fanáticos e passarão a condenar todas as outras doutrinas. Afinal, "Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências, baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar” (Carl Sagan)


Origem:
A necessidade de explicar fenômenos (como o ciclo do sol, da lua e dos astros) é tão antiga quanto a humanidade e isso nos levou a diversas especulações que foram negadas e aceitas com o passar do tempo. Entre essas especulações foram surgindo grandes casualidades que observadas sempre após um determinado evento iam sendo tidas como verdadeiras (como um trovão seguido do relâmpago). Muito embora alguns fossem corretamente relacionados, a maioria não seguia uma explicação lógica (pensamentos pré-lógicos, ou seja, instintivos). Nascem as superstições.
“A religião do homem primitivo encontra-se cheia de superstições, cuja origem poderá ter sido a falsa observação de relações de causa e efeito. Quer porque uma coisa venha depois da outra, quer simultaneamente quando um fato acontece, a relação é fixada como sendo efetiva.” (Enciclopédia Simpozio)
Dessas “explicações” também derivam uma outra classe de pensamento adotado pelas religiões: os mitos. Base do folclore, das tradições e cultura de um povo.
Com o passar do tempo, a necessidade de controle da sociedade cresceu bastante, e a hierarquia foi se fortalecendo até que os mais altos postos de poder foram ocupados por pessoas tidas como intermediários entre os deuses e a Terra (podemos ver isso nos faraós, nos sacerdotes dos templos gregos – que decidiam o destino da população), e influenciavam fortemente toda a cultura local, com ordens de sacrifícios, rituais, e com isso estruturavam as organizações sociais, econômicas e políticas. Nesse estado, a pregação foi aumentando exponencialmente.
“A religião é vista pelas pessoas comuns como verdadeira, pelos inteligentes como falsa, e pelos governantes como útil.” (Sêneca)

Histórico:
As principais religiões do mundo contemporâneo tiveram suas origens na Idade Antiga, baseada quase que toda vez, no folclore local. Por isso, abordaremos um rápido resumo dos principais povos:

  • 1) Povos Indo-Europeus: Os indo-europeus, que há cerca de 4 mil anos começaram a migrar e a ocupar as mais diversas regiões da Ásia (povos Indos-Arianos – Iranianos (Irã) e indos-arianos (Índia) –, Hititas, Tocarianos) e da Europa (demais povos, como: baltos-eslavos, celtas, itálicos, gregos, germânicos), podem ser considerados como originários das principais culturas posteriores. Estes, todavia, nunca formaram uma unidade sólida, uma raça, um império organizado e nem mesmo uma civilização material comum. A única coisa em comum desses grupos seria a unidade lingüística e a unidade religiosa. Unidade esta que pode ser visualizada como uma semelhança presente nas religiões posteriores. Por hora, podemos citar os exemplos: o aspecto dos mitos (lutas dos deuses contras as forças do caos), a história narrada em forma cíclica, e a crença em diversos deuses (politeísmo).
  • 2) Povos Semitas:Os semitas originários da península arábica, também se expandiram em diversos locais do mundo, levando consigo a cultura local.Embora alguns povos de origem semítica tenham adotado a crença politeísta, os principais (que são a raiz das grandes religiões monoteístas) adotaram um único deus (monoteísmo), característica que difere bastante dos indo-europeus. De origem semítica temos os seguintes povos: árabes, egípcios, hebraicos, acadianos, fenícios, aramaicos. Os hebreus, caracterizavam-se por definir a história de uma forma linear e ter o deus como ser criador de tudo, responsável pela vida. A origem semítica pode ser interpretada a partir da bíblia, no gêneses, com a linhagem dos descendentes de Sem, filho de Noé.

Depois de fazer essa pequena distinção desses dois povos, poderemos partir pra uma classificação regional e então falar resumidamente de cada religião em si.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Análise filosófico-literária de Chiclete com Banana


Quiçá o título já seja suficientemente auto-explicativo e intrigante, resolvi ser democrático e agradar a todos os gostos. Aqueles que gostam de submúsicas do subgênero que é o baiano, poderão deleitar-se com a devida interpretação de uma das letras que marcou uma geração aí que não sei qual foi. Aqueles que não............................. haverão de esperar por novos conteúdos sobre a arte. (Entendam que precisamos vender nosso peixe também, não podemos deixar este recinto abandonado às traças, por isso temos de nos utilizar, vez ou outra, de assuntos que atraiam a atenção massiva).

A música é “Moranguinho”.

Pra te espiar
Eu dou a volta no seu mundo
Eu pulo seu muro
Pra te encontrar
Eu dou a volta no seu mundo
Eu pulo seu muro
Faço o que quiser de brincadeira
Carrossel no céu, selva branca
E nascer em cada estrela a novidade
Que o muro do seu mundo era saudade
Por que não dizer? Posso derreter...
Moranguinho no copinho esperando por você
 
Quanto mais sorvete, quer o meu amor
Muito mais desejos de amor
Quanto mais desejos, quer o meu calor
Muito mais sorvete de amor

A música, como se pode nitidamente perceber, aborda um tema com que bastante convivemos hoje. É uma reflexão crítica sobre a sexualidade exacerbada e sem princípios, resultado da proposta destruidora da sociedade moderna. Há símbolos claros no texto. O morango, por exemplo, propositalmente flexionado no diminutivo para conferir impressão de proximidade e sensualidade, nada mais é que o corpo desnudo da mulher, pois é um fruto vermelho - cor que simboliza a atração física - de formas sinuosas, tal qual o corpo feminino. É seguido da expressão “no copinho” para enfatizar a frieza mecânica e até mesmo capitalista-industrial com que é tratado o relacionamento amoroso entre homem e mulher.


Em seu lado mais direto, a letra menciona uma série de fetiches sexuais, tais quais voyerism (“pra te espiar”, “eu pulo seu muro”), sadomasoquismo (“faço o que quiser de brincadeira”), bissexualismo (“e nascer em cada estrela a novidade”) - sem falar em outros como “selva branca” e “posso derreter” –, de modo a ironizar o anti-moralismo libertino da nova ordem social de aceitar a quebra de tabus e a banalização do ato sexual, mas conferindo-o ao sujeito enunciador. Em outras palavras, em busca de obter o máximo de saciedade para o ego no que diz respeito ao prazer carnal humano, aceita-se tudo até que aquele seja encontrado. Entende-se a expressão “eu dou a volta no seu mundo” como explorar o corpo do cônjuge, a exemplo, como a uma caverna, podendo ser, ainda, um eufemismo para o orgasmo.


Notável é a sonoridade do trecho: “Carrossel no céu, selva branca”. A repetição do fonema /s/, constituindo uma aliteração, simboliza claramente o conjunto sonoro de uma relação sexual. De maneira proposital, as conotações que podemos obter do trecho são puramente relativas aos movimentos sexuais e, novamente, ao orgasmo, enfatizando ainda mais o desespero do eu-lírico em busca da satisfação própria.


Como pudemos ver, o sujeito enunciador do texto vive em contradição: ao mesmo tempo em que quer saciar as vontades de seu próprio ego acima de tudo, percebe que a única forma de fazê-lo é através da relação com outro ser, do qual ele se torna dependente, colocando-o numa situação de completo entreguismo amoroso, como se percebe nos trechos em que ele explicita a necessidade de ir atrás do objeto amado (“pra te espiar...”, “pra te encontrar...”, “faço o que quiser”, “... esperando por você”).


O sorvete, por sua vez, aparece como elemento contrastante da relação sexual, vez que é frio e conota distância quando aplicado ao caso, e é jogado de forma irônica junto com o ato de desejar o calor do parceiro. É como um sadomasoquismo atuante na idéia abstrata que é o relacionamento em que se é cruel com o cônjuge e este ainda deseja estar cada vez mais próximo do outro, precisando, ironicamente, mais dele.


Ainda, o vocábulo “desejo” está disposto de modo que possa transparecer esta tendência dialética do ser humano mencionada nos parágrafos acima de querer saciar apenas a vontade própria, mas de necessitar de outro ser, explicitando mais uma das contradições do homem e do mundo moderno.


Ao final, o amor é oferecido e tratado como produto, quando posto na expressão “sorvete de amor”. Tendo em vista que as sociedades, e, cada vez mais, seus componentes, separadamente, têm se transformado em função da economia, e, como vivemos numa sociedade capitalista, do capital. Enquanto o concreto já foi transformado em produto, como, por exemplo, uma caneta, o abstrato vem sofrendo o mesmo processo ao longo dos anos, como, por exemplo, as idéias sobre uma caneta, e, na música, o próprio amor, tanto idealizado e feito-sublime pelas sociedades de muitas épocas, e até a atual, hipocritamente.


Para concluir, este trabalho musical aborda a questão da “coisificação” ou reificação em razão de satisfazer o próprio eu, mas, sem perceber a impossibilidade de tal acontecimento, o eu se põe em situação de entregar-se completamente ao ato de amar (sujeito), transformando o amado (objeto) em essencial. Aproveita para ironizar e criticar a sociedade libertina de hoje, representada pelo microcosmo em que vive o sujeito enunciador.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

A arte pop

(este é um texto com o selo "SOCIEDADE AMANTES DA LEITURA")


(Pop Art, por Mel Ramos)

Chega de Andy Warhol! O que nós queremos é a utopia dos artistas! Um lugar onde todos nós, escritores, músicos, compositores, cantores, pintores, escultores, desenhistas, atores, diretores, e, claro, poetas, teriam seu lugarzinho reservado! Nada de leis para prender poetas boêmios, tomar violões de cancioneiros da meia-noite! Deles seria a noite, e ai daquele que se incomodasse com isso!

Queremos um lugar onde a arte seja pop, onde a arte seja valorizada pelas massas. Não a arte comercial, a arte como ela é. Não aquela gigantesca empresa que promove aquele CD com qualidade irrisória, mas aquele desenhista-de-folha-de-trás-de-caderno-de-escola que virou advogado por pressão dos pais. Queremos uma arte pop decente!

Queremos que todos apreciem arte pelo que a arte é, queremos que todos sintam-se tocados pela arte. Queremos ser inspirados pela poesia! Eis o nosso mundo.

Andaríamos pelas esquinas recitando poesia. “Eu, filho do carbono e do amoníaco...”, recitaria um transeunte. Um taxista que observava a cena prosseguiria: “... monstro de escuridão e rutilância!”. O pedestre viraria para o taxista, sorriria, e prosseguiria feliz sua caminhada, sabendo que o mundo está mais feliz porque todos gostam de poesia.

Haveria música toda noite. Algumas noites iríamos pro Bach, outras, pro Chopin, mas sempre terminaríamos com Nelson Rodrigues. Admiraríamos o artista que pinta a amada na sacada, e o infeliz que diz à namorada que só ela existe a seus olhos (afinal, retórica também é uma arte).

Teríamos exposições de arte, e verdadeiros entendidos para apreciá-las. Não aquele que diz que o traço tem um estilo suavemente impressionista, muito embora a coloração pareça surrealista, e o pintor se encaixe num novo movimento que mistura... Não, isso não. Teríamos quem dissesse “é bom” e sentisse o trabalho.

Ah!, os festivais de dança! Grupos e casais que dançariam a noite toda como se a noite fosse uma vida inteira, não para competir, mas pela elegância e o prazer que a dança proporciona. E teríamos expectadores: os que dançaram nas noites anteriores e os que dançarão nas noites seguintes.

Não nos esqueçamos que cozinhar é uma arte. Todos comeriam bem nesse mundo. Não há necessidade de se empanturrar: a boa arte sempre deixa um “gostinho de quero-mais”. Os pratos seriam preciosos em todos os sentidos: aspecto, textura, sabor, cheiro, fineza... E todos saberiam apreciá-lo.

Todos gostariam de literatura: adeus ao analfabetismo, e, finalmente, grupos de leitura que realmente lêem! Com a leitura, conhecimento, e até os tediosos debates políticos tornar-se-iam encontros curiosos de repentistas.

Num mundo baseado na arte, até aprenderíamos a observar a arte natural, a natureza em si. Saciaríamos nossos sentidos com as artes que impressionam cada um deles individualmente ou em conjunto. Depois de um dia cansativo de trabalho, seus sentidos estariam todos plenamente satisfeitos. Você dormiria feliz, acordaria feliz. O mundo seria feliz. Talvez nem morrêssemos. A morte tem pena de tomar uma vida plena. Ou seríamos tão impressionados pela arte que nós revelaríamos a obra perfeita que somos. E a arte a morte não toma.


(Bocage, poeta português)


quinta-feira, 12 de julho de 2007

Breves comentários sobre os princípios das relações extrapessoais e da sociedade em função de nós mesmos

Amor: segundo Nietzsche, os amantes amam mais o amor que a pessoa amada, transformando o amor em sujeito e o amado em objeto; amar é definido quase que unicamente pelo interesse de satisfazer nossas vontades próprias, como saciar a solidão, o desejo sexual e a necessidade inerente do animal, reprodução. Segundo Camões,

Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Além disso, está inserido nos valores apregoados no inconsciente coletivo através da...

... Convenção social: extremamente necessário para a manutenção das relações extrapessoais; momentos em que se abandona, aparentemente, o próprio ego e cumprem-se tarefas em função de outro ego; existe para que possamos alimentar o nosso ego social, e fazer-nos sentir bons e justos, o que estabelece um...

... Padrão: um dos exemplos de convenção social, e é predefinir o que cada indivíduo da sociedade, separadamente, deve seguir, baseado em valores e princípios morais que se foram transformando ao longo dos séculos, sempre partindo, na escala social, de cima para baixo; numa relação, padrões moderados tendem a ser criados para pacificar a interação entre os membros que os adotam; ajuda a destruir os...

... Valores individuais: prioridades psicológicas de cada indivíduo da sociedade; é impossível que sejam plenamente ignorados, mas vão cada vez mais sendo corrompidos por meios coletivistas como a globalização, agregando cada vez mais membros à massa e ironicamente delineando os desejos do nosso próprio ego, transformando tudo num gosto comum ; para uma boa convivência, ainda que a dois, é necessário que permaneçam em segundo plano, como sugere a coletividade; surgiu de nada menos que uma...

... Concessão de direitos: para o que chamavam e ainda chamam de “bem coletivo”, os homens foram gradativamente abdicando de seus poderes, liberdades e vontades para que um ser ‘superior’ em algum aspecto pudesse decidir o que lhes era melhor ou pior; surgiu ainda nas primitivas sociedades pré-históricas com o primeiro chefe militar da história, e, desde então, vem nada mais que destruindo externa e internamente cada ser, através de, simploriamente exemplificando, as guerras e o estabelecimento de valores como a moda (por conseguinte, o culto ao padrão na estética, cerceando a liberdade individual de ser como quiser); foi, ao longo do tempo, e ainda é manipulada através do...

... Medo: este ainda é um bem “privado”, embora só surja em cada homem por este ter contatos sociais; é o instrumento que aglomera e, ao mesmo tempo, controla as massas e sua inter-relação, podendo, dialeticamente, construir e, ao mesmo tempo, destruir a sociedade; para controlá-lo em sociedade, os superiores criaram a...

... Justiça: meio de estabelecer padrões para o que é sério e correto, julgando, de maneira positivista, o que é bom e o que é ruim para a sociedade, esquecendo-se de que, em verdade, são membros individuais aglomerados por valores impostos. Como podem decidir o que é melhor para cada um se, ainda que pouco, somos todos diferentes?

O individualismo pleno não existe em prática, mas foi brilhantemente descrito (voltando a Nietzsche, citado na primeira parte deste texto) na forma de Übermensch, algo equivalente a “super-homem” (de onde a DC Comics tirou a idéia para o super-homem, apenas transformando o poder psicológico em físico), um ser que vive independente de outros, de medos, de valores comuns, vive apenas em função de saciar a si próprio, sem escrúpulos de reificar a outro, caso lhe convenha, em benefício próprio. Seria a definição de anti-social perfeita.

Por que, desde sempre, precisamos nos relacionar? E por que essa necessidade gerou a sociedade? Esta será tão e mais imperfeita que o homem, vez que sempre sugará o pior de cada um. A sociedade nunca poderá ser comum, como trabalhada na “Teoria da Complementação Humana”, em que todos poderíamos ser, “liquefeitos”, um só; será eternamente composta por indivíduos que são e não são sociais em todos os seus aspectos. A reposta para a pergunta é simples: somos fracos. Somos imperfeitos cacos de vidro suspensos, ligados um ao outro por traços irrisórios de papel, que, se se romperem, farão com que caiamos e nos despedacemos. Somos um organismo que se encarrega de eliminar as células diferentes. Somos animais. Somos carne que interage com carne.

Mas a carne envelhece, morre, apodrece... E todas as células têm seu fim. Nosso organismo, por sua vez, é mentecapto e decadente. O princípio de relacionar-se é o caos. Para solucionar o caos do relacionamento a poucos, criou-se o relacionamento comum, com todos, que deveria prover condições para a sobrevivência, e nada mais faz além de germinar a semente que, em longo prazo, será o princípio da auto-destruição da raça humana.

domingo, 8 de julho de 2007

A Sociedade do Photoshop



A beleza cultuada pelos homo sapiens desde suas primeiras relações torna-se algo tão presente hoje, que em alguns, chega a casos doentios e desnecessários. A enorme quantidade de operações e a venda infinita de produtos de beleza e cosmética é a prova de como a aparência é algo bastante importante (será mesmo?) para os humanos.

As pessoas geralmente tendem a se embelezar para mostrarem-se a outras no intuito de causar alguma atração, que normalmente é o pontapé inicial de algum laço futuro. Embora não seja o mais importante, muitos se apegam completamente a aparência e usam a mentira como maneira de manter uma relação baseada em falsos valores. A mentira toma uma posição de destaque, junto à estética, dentro de uma convivência.

A vaidade e obsessão pela beleza tornam as pessoas muito ligadas a coisas fúteis e desnecessárias. Não é à toa que a procura por cirurgias plásticas – quase sempre desnecessárias e com riscos de saúde –, e produtos de beleza são tão procurado atualmente, já que a importância de uma aparência exterior para uma sociedade regida pela falsidade e dissimulação é tão grande quanto o lucro de uma multinacional de cosméticos. Sociedade essa que é baseada em modelos propostos pela mídia, que utiliza qualquer meio de edição de vídeo e imagem possível, para tornar seus comerciais mais e mais atraentes (as multinacionais são outras inimigas em potencial pra quem não tem condição alguma e se deixa encher de falsas esperanças propostas – barriga de tanquinho, ausência de gorduras etc.).

Junto à vaidade, a falsidade é algo tão presente que em casos extremos torna-se normal. O impacto geralmente causado pela verdade e a dificuldade de representá-la, a põe em segundo plano, onde o principal sentimento é hipocrisia.

Os seres humanos, em sua essência, têm atração pelo belo, entretanto, não é necessariamente apenas a aparência que dirige uma relação, mas sim a verdade. Porém, algo tão relativo sempre acaba sendo esquecido pela dificuldade de ser aceito por ambos, principalmente quando a persuasão é tão usada. Afinal, se a estética é uma questão formada a partir de pré-conceitos que não podem ser comparados, então por quê não usufruir da retórica? “Em três semanas, qualquer sinal de ruga estará tão longe quanto a sua preocupação com ela”. Claro! Tão longe quanto a inteligência está quando se opta por usá-la!

A valorização excessiva pela estética e a dissimulação tornam as pessoas frívolas , enquanto ocorre a perda de valores muito mais importantes como a inteligência e a consciência – termos importantes para notar que a beleza, embora seja importante, não é essencial.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

A Morte e a Morte (e a morte)


Parte II – A poesia no Brasil durante as Guerras

Segunda Guerra Mundial. A humanidade está assombrada pelo número de mortos que aumenta de boca em boca, e circula o mundo inteiro várias vezes. O homem transpassa duas grandes chacinas; junto com ele, o poeta, que, vendo-se perdido em meio a tantas balas – também perdidas –, questionava a necessidade de fazer poesia em tão macabra hora – muitos morriam no tempo de cada palavra escrita.

(C.R.W. Nevinson - Machine Gun)

Na primeira fase do modernismo no Brasil (1922 – 1930) foi quando começou a se questionar o academicismo literário, as convenções da escrita poética. O movimento propunha que todos estavam perdidos, e que deveriam achar uma nova maneira de ser. Bandeira acha-se em uma notícia de jornal.

“João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.”

Fernando Pessoa também questionava o fazer poético, e ainda acusava os poetas.

“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente”;

A arte teve de resistir a tais mudanças. Não é o homem que decide o futuro da arte, sendo a arte um reflexo dos sentimentos – ou da falta deles – nos homens? A arte teve de resistir às quebras gramaticais (“Uma noite ele chegou NO bar Vinte de Novembro”), ao anti-convencionalismo, a Pablo Picasso e a Salvador Dali. O sujeito muda, e, sendo o sujeito o responsável pela transformação do objeto, muda o objeto.

(Pablo Picasso - Gunner Guillaume de Kostrowitzky)

(Salvador Dali - Premonição da Guerra Civil)

(Salvador Dali - Guerra Civil)

(Fernand Léger - Soldiers playing at cards)

A arte vinha também resistindo às guerras, embora enfraquecendo lentamente. A segunda fase do modernismo no Brasil (1930 – 1945) está aí – documentada – para provar. Conforme o artigo de Fábio D. P. Rodrigues, publicado pela Unicamp:

“Drummond (...) dedicou sempre alguns poemas sobre o fazer poético, sobre a função da poesia. (...) Carlos Drummond de Andrade nos deu belíssimos poemas que comportam uma poética própria que, na análise cronológica de seus livros, ora se transforma com alguns nuances ou mais dramaticamente, ora conserva outros conceitos e idéias.” Alguns trechos de poesias de Carlos Drummond são, por Rodrigues, destacadas neste aspecto.

“Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração”;

“A mão que escreve este poema
não sabe que está escrevendo”;

“Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever”;

Pode-se reparar que o poeta sempre se encontra em solidão, ou muitas vezes nem aparece, escondido na metonímia de sua mão, ou da inconsciência mecânica no fazer poético. Quando aparece, aparece moderno: um poeta em seu cotidiano. Não há romantismo na vida patética que se vive. Até o sentimentalismo poético é tratado com descaso, e o poeta é tido como mais um no meio da multidão, irrelevante para o futuro da humanidade – que, na época, estava a ser decidido pelo maior poderio militar.

“O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da terra,
uma ovação o persegue
feito vaia,

Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos...
O poeta está melancólico.”;

Drummond retrata bem a agonia de ser poeta a época. Todos tinham consciência de que poderiam estar salvando a humanidade, e não escrevendo. Ainda bem que continuaram escrevendo.

“É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.”

Ainda sobre a arte de escrever, talvez seja este o mais direto texto de Drummond sobre o assunto:

Procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consuma com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?

Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro, Aguilar, 1967.) “

(A arte vira meio de protesto político)

A Segunda Guerra acaba. Os aliados detêm a “vitória”. Paz. Paz? A arte está cansada de ser maltratada, destruída – não se sabe quantos livros foram queimados por Hitler, quantas obras foram perdidas na marcha devastadora dos exércitos-, e fraqueja. Como uma flor que nasce no asfalto de uma rua movimentada, os artistas ainda vivos tentam fazê-la renascer. Ainda por Drummond:

“Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
(...)
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”

O mundo agora está na paz caricata da guerra fria, preparado para começar do zero a concepção do fazer poético. O modernismo já havia sido criado, mas precisava ser renovado.

Na continuação, sairemos da América e iremos para os Estados Unidos da América e para a Europa.

terça-feira, 3 de julho de 2007

A Morte e a Morte (e a morte)

(David, A morte de Sócrates)

Parte I – a Morte pela arte e mitologia

Pisterovix saúda os visitantes, estas idéias perambulando pela internet, expandindo seu campo eletromagnético de conhecimento. É a primeira vez que ele posta, e seria recomendável, sob análise das duras regras da etiqueta, que fosse cortês com os convidados. Etiqueta esta, por sinal, lembra-me que a educação – parte menos exagerada daquela – morreu, o que me faz voltar ao título do texto (para os preguiçosos, “A Morte e a Morte (e a morte)”).

Uma das temáticas sugeridas num dos encontros foi a morte, o que inspira poetas, pintores e demais mestres nas diversas formas de manifestação da arte. Não sou poeta, pintor, muito menos músico ou até dançarino (dançar algo com inspiração na morte talvez não fosse uma tarefa fácil, por sinal). Pode-se pensar que não se deve haver muito a se falar sobre a morte, supondo, de modo a concordar com a ciência, que as pessoas que dizem ter conversado com os mortos mentiram ou sonharam, e que apenas se sabe que acontece, ou até porque acontece. Nada mais que isso. Nada depois disso - ao menos, nada que misture religião.

(Baglione - A morte de São Sebastião)

(Caravaggio - A incredulidade de São Tomé)

Há várias maneiras de se trabalhar a morte.


(James Ensor - The masks and Death)

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.”

Essa é uma das maneiras que Bandeira, que intensamente conviveu com a morte desde seus dezessete anos, escolheu para mencionar o tema. Desprezo, frio. A morte vem... Estou à sua espera. A mesa está posta, jante comigo. (Isso daria uma ótima crônica para um bom cronista). Há para quem a morte é sagrada, seja porque há vida eterna depois dela, seja porque ela marca o fim da única jornada que temos, ou seja porque ela mesma é representada por um deus ou deusa. Como para os astecas. “MICTLANTECUHTLE, também denominado Micli ou Mictlantecuhtli (senhor do reino dos mortos, na língua asteca), é um deus que é o governante de Mictlan, a camada mais profunda do submundo asteca. É representado por uma pessoa vestindo uma caveira com dentes salientes, ou como um esqueleto. Sua esposa é Mictecacihuatl. Seus animais simbólicos são a aranha, a coruja e o morcego. É o deus regente do signo do Cão no horóscopo asteca.” (extraído da Wikipedia). Encontramos nas mitologias, assim como no texto de Manuel Bandeira acima disposto, a morte personificada. Nos quadrinhos de Hellblazer, talvez mais famoso pelo nome de John Constantine (quem não assistiu à mega-produção cinematográfica?), Mictlantecuhtole aparece como antagonista.



No livro “As intermitências da morte”, do escritor José Saramago, ganhador do Nobel, a morte aparece cômica, simpática, até mais humana. Em sua visão, a morte não é mais que, ironicamente, um funcionário do poder máximo, como se se encarregasse da faxina.

(Osíris) (Tribunal de Osíris)

Os egípcios gastavam a vida preparando-se para a morte – daí a importância dada à mumificação dos faraós. Acreditavam que, passada a morte, o deus Osíris, da vida e da morte, julgá-los-ia em seu tribunal. O coração do infeliz era pesado, e, para que pudesse alcançar a glória, deveria ser mais leve que uma pena. Além dos mutilados pela chegada dos assírios, cujo coração deveria encontrar-se em estado de leves fatias, poucos devem ter alcançado a salvação.

Há, também, os cépticos, como os mesopotâmicos, que acreditavam no pó após a morte. Não há vida. Viramos espíritos que vagam e alimentam-se de pó – fosse verdade, as casas mal-assombradas seriam lugares limpos o suficiente para você comer na mesa sem precisar passar "um paninho" antes. E há os mais cépticos. Morreu, vai comer capim pela raiz, ficar a sete palmos, dormir com os peixes, e não terá como criar mais eufemismos envolvendo aspectos naturais – naturais como a morte é natural.

“Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão — felizes! — num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?...”

Morrer mais completamente ainda,
— Sem deixar sequer esse nome.”

Novamente por Bandeira, em cuja obra, já se pode ter percebido, a temática da morte é constante. Pode ter sido o caso dele descrito em sua própria frase: “A vida inteira que poderia ter sido e que não foi.”, o caso dos que olham para trás com desespero, uma amargura de insatisfação, e, agora, de impotência – nada pode ser feito em relação ao próprio passado. É mais um tipo de morte, costuma acontecer antes das demais: a morte psicológica.

(A morte do Ego)

Quincas Berro-D’Água, cujo nome foi dado pelo grito ouvido por toda a Bahia, ao confundir água e sua inconfundível bebida, nomeou, sem pretender, meu texto. O livro em que aparece é “A morte e a morte de Quincas Berro-D’Água”, do baiano Jorge Amado. O escritor foi mais esperto que seu personagem, pois a confusão que fez foi proposital. Por que “a morte e a morte”? Ora, Quincas não foi presenteado com a sorte. Não agüentava viver em casa. Fugiu, foi viver na boemia. Fê-lo até quando pôde. Quincas morre fisicamente. Mas há toda uma figura social de Quincas preservada. Depois Quincas iria morrer socialmente (como Bandeira descreve nos versos: “Morrer mais completamente ainda, / — Sem deixar sequer esse nome.”). E ainda há uma terceira que Jorge Amado, sabiamente, não expôs no título do livro, deixando a percepção dela à atenção e crítica de leitor avisado. Antes de tudo isso, Quincas morre psicologicamente. É quando decide abandonar a consciência e viver em função do ego.

Morremos. Fato. Será que não deixamos nada para trás? Há uma frase que diz que uma vida é bem vivida quando fazemos algo que mereça ser escrito ou quando escrevermos algo que mereça ser lido. Todos os povos e artistas citados aqui hoje cumpriram seu papel. E você, o que já fez?

(Jacques-Louis David - Marat Assassinated)

domingo, 1 de julho de 2007

O sebo

O amigo informa que a cidade tem mais um sebo. Exulto com a boa-nova e corro ao endereço indicado. Ressalvada a resistência heróica de um Carlos Ribeiro, de um Roberto Cunha e poucos mais, os sebos cariocas foram-se acabando, cedendo lugar a lojas sofisticadas, onde o livro é exposto como artigo da moda, e há volumes mais chamativos do que as mais doidas gravatas, antes objeto de decoração de interior, do que de leitura.

Para onde foram os livros usados, os que tinham na capa esse visgo publicitário, as brochuras encardidas, as encadernações de pobre, os folhetos, as revistas do tempo de Rodrigues Alves? Tudo isso também é gente, na cidade das letras, e. como gente, ninho de surpresas: no mar de obras condenadas ao esquecimento, pesca-se às vezes o livrinho raro, não digo raro de todo, pois o faro do mercador arguto o escondeu atrás do balcão, e destina-o a Plínio Doyle, ao Mindlin paulista ou à Library of Congress, que não dorme no ponto... mas, pelo menos, o relativamente raro, sobretudo aquele volumeco imprevisto, que não andávamos catando, e que nos pede para tirá-lo dali, pois está ligado a circunstâncias de nossa vida: operação de resgate, a que procedemos com alguma ternura. Vem para a minha estante, Marcelo Gama, amigo velho, ou antes, volta para ela, de onde não devias ter saído; sumiste porque naqueles tempos me faltou dinheiro para levar a namorada ao cinema, e tive de sacrificar-te, ou foi um pilantra que te pediu emprestado e não te devolveu? Perdão, Marcelo, mas por 5 cruzeiros terei de novo tua companhia.

Matutando no desaparecimento de tantos sebos ilustres, inclusive o do Brasielas, chego a este novo. É agradavelmente desarrumado, como convém ao gênero de comércio, para deixar o freguês à vontade. Os fregueses, mesmo não se dando a conhecer uns aos outros, são todos conhecidos como freqüentadores crônicos de sebo. Caras peculiares. Em geral usam roupas escuras, de certo uso (como os livros), falam baixo, andam devagar. Uns têm a ponta dos dedos ressecada e gretada pela alergia à poeira, mas que remédio, se a poeira é o preço de uma alegria bibliográfica?

Formam uma confraria silenciosa, que procura sempre e infatigavelmente uma pérola ou um diamante setecentista, elzeviriano, sabendo que não o encontrará nunca entre aqueles restos de literatura, mas qualquer encontro a satisfaz. Procurar, mesmo não achando, é ótimo. Não há a primeira edição dos Lusíadas, mas há a do Eu, e cumpre negociá-la com discrição, para que o vizinho não desconfie do achado e nos suplante com o seu poder econômico. A falta da primeira, encontra-se a segunda, ou outro livro qualquer, cujo preço já é uma sugestão: "Me leva". Lá em casa não cabe mais nem um aviso de conta de luz, tanto mais que as listas telefônicas estão ocupando o lugar dos dicionários, mas o freqüentador de sebo leva assim mesmo o volume, que não irá folhear. A mulher espera-o zangada: "Trouxe mais uma porcaria pra casa! "Porcaria? Tem um verso que nos comoveu, quando a gente se comovia fácil, tem uma vinheta, um traço particular, um agrado só para nós, e basta.

A inenarrável promiscuidade dos sebos! Dante em contubérnio com o relatório do Ministro da Fazenda, os eleatas junto do almanaque de palavras cruzadas, Tolstoi e Cornélio Pires, Mandrake e Sóror Juana Inés de la Cruz... Nenhum deles reclama. A paz é absoluta. O sebo é a verdadeira democracia, para não dizer: uma igreja de todos os santos, inclusive os demônios, confraternizados e humildes. Saio dele com um pacote de novidades velhas, e a sensação de que visitei, não um cemitério de papel, mas o território livre do espírito, contra o qual não prevalecerá nenhuma forma de opressão.

(Carlos Drummond de Andrade)


Ler: uma experiência fantástica! Ler informa, diverte, aproxima, esclarece e mais que tudo - ler emociona.
Não podemos deixar de falar na importância dos livros para nossos encontros e conversas. Pequeno texto de Drummond para abrir com classe o nosso sarau. E esses, mesmo os mais velhos, empoeirados, esquecidos nos sebos da vida merecem nossa atenção. Sejam bem-vindos e que comecem os debates.

"Alea jacta est" - Júlio César.