quinta-feira, 5 de julho de 2007

A Morte e a Morte (e a morte)


Parte II – A poesia no Brasil durante as Guerras

Segunda Guerra Mundial. A humanidade está assombrada pelo número de mortos que aumenta de boca em boca, e circula o mundo inteiro várias vezes. O homem transpassa duas grandes chacinas; junto com ele, o poeta, que, vendo-se perdido em meio a tantas balas – também perdidas –, questionava a necessidade de fazer poesia em tão macabra hora – muitos morriam no tempo de cada palavra escrita.

(C.R.W. Nevinson - Machine Gun)

Na primeira fase do modernismo no Brasil (1922 – 1930) foi quando começou a se questionar o academicismo literário, as convenções da escrita poética. O movimento propunha que todos estavam perdidos, e que deveriam achar uma nova maneira de ser. Bandeira acha-se em uma notícia de jornal.

“João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.”

Fernando Pessoa também questionava o fazer poético, e ainda acusava os poetas.

“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente”;

A arte teve de resistir a tais mudanças. Não é o homem que decide o futuro da arte, sendo a arte um reflexo dos sentimentos – ou da falta deles – nos homens? A arte teve de resistir às quebras gramaticais (“Uma noite ele chegou NO bar Vinte de Novembro”), ao anti-convencionalismo, a Pablo Picasso e a Salvador Dali. O sujeito muda, e, sendo o sujeito o responsável pela transformação do objeto, muda o objeto.

(Pablo Picasso - Gunner Guillaume de Kostrowitzky)

(Salvador Dali - Premonição da Guerra Civil)

(Salvador Dali - Guerra Civil)

(Fernand Léger - Soldiers playing at cards)

A arte vinha também resistindo às guerras, embora enfraquecendo lentamente. A segunda fase do modernismo no Brasil (1930 – 1945) está aí – documentada – para provar. Conforme o artigo de Fábio D. P. Rodrigues, publicado pela Unicamp:

“Drummond (...) dedicou sempre alguns poemas sobre o fazer poético, sobre a função da poesia. (...) Carlos Drummond de Andrade nos deu belíssimos poemas que comportam uma poética própria que, na análise cronológica de seus livros, ora se transforma com alguns nuances ou mais dramaticamente, ora conserva outros conceitos e idéias.” Alguns trechos de poesias de Carlos Drummond são, por Rodrigues, destacadas neste aspecto.

“Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração”;

“A mão que escreve este poema
não sabe que está escrevendo”;

“Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever”;

Pode-se reparar que o poeta sempre se encontra em solidão, ou muitas vezes nem aparece, escondido na metonímia de sua mão, ou da inconsciência mecânica no fazer poético. Quando aparece, aparece moderno: um poeta em seu cotidiano. Não há romantismo na vida patética que se vive. Até o sentimentalismo poético é tratado com descaso, e o poeta é tido como mais um no meio da multidão, irrelevante para o futuro da humanidade – que, na época, estava a ser decidido pelo maior poderio militar.

“O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da terra,
uma ovação o persegue
feito vaia,

Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos...
O poeta está melancólico.”;

Drummond retrata bem a agonia de ser poeta a época. Todos tinham consciência de que poderiam estar salvando a humanidade, e não escrevendo. Ainda bem que continuaram escrevendo.

“É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.”

Ainda sobre a arte de escrever, talvez seja este o mais direto texto de Drummond sobre o assunto:

Procura da poesia

Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo, esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes. Nem me reveles teus sentimentos, que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz. O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas. Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma. O canto não é a natureza nem os homens em sociedade. Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas) elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças. Teu iate de marfim, teu sapato de diamante, vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação. Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consuma com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?

Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro, Aguilar, 1967.) “

(A arte vira meio de protesto político)

A Segunda Guerra acaba. Os aliados detêm a “vitória”. Paz. Paz? A arte está cansada de ser maltratada, destruída – não se sabe quantos livros foram queimados por Hitler, quantas obras foram perdidas na marcha devastadora dos exércitos-, e fraqueja. Como uma flor que nasce no asfalto de uma rua movimentada, os artistas ainda vivos tentam fazê-la renascer. Ainda por Drummond:

“Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
(...)
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”

O mundo agora está na paz caricata da guerra fria, preparado para começar do zero a concepção do fazer poético. O modernismo já havia sido criado, mas precisava ser renovado.

Na continuação, sairemos da América e iremos para os Estados Unidos da América e para a Europa.

Um comentário:

Roger disse...

Belo post. Mas, Salvador Dali comanda, o resto é trouxa (y) Hehehe