sábado, 29 de agosto de 2009

Quote-dian

O sexo acabara de acabar. Não ficaram juntinhos. Ela ligou a televisão. Ele tentou ficar na posição em que estava, um pouco mais próximo, mas estava particularmente frio, então ele virou de lado e se cobriu. Foi tentar dormir apesar de qualquer coisa que passava e que ela, embora não conseguisse, tentava assistir. Absortos por seus turbilhões de pensamentos de fim de dia que preferiam não ter, adormeciam.
É verdade, esta está longe de ser uma história emocionante. Está mais para uma aventura do real. Também não é uma história longa: o tempo passa rápido demais para aqueles que dormem profundamente um sono leve e perturbado. E, ainda por cima, curto. Ele acorda primeiro. Mente vazia. Essa é a melhor maneira de se pegar os sonhos.
Os sonhos começam grandes e complexos, cheios de detalhes, e, à medida que o tempo de sono vai passando e a hora de acordar, se aproximando, ele vai se afunilando, até que, no instante que representa o transe entre viver um mundo e outro, que começa quando certas partes do cérebro diminuem o ritmo de trabalho e termina quando os olhos estão definitivamente abertos, o sonho é representado por apenas um curto fio. Ele segue seu rumo até passar por debaixo da porta que leva para além da consciência, definitivamente trancada com todas as chaves. Os sonhos fogem quando já se sai diretamente do transe a pensar: “está tarde!”, “está cedo!”, ou “preciso lembrar o que sonhei!”.
E, de fato, mantinha a mente vazia, sendo daí capaz de puxar o fio, que ia ficando mais largo, e trazia consigo o sonho, todo fragmentado em pedaços pequenos, imagens congeladas, a pedaços grandes, cenas inteiras, às vezes desfocadas. Poderia costurá-lo novamente, se quisesse. Reviu parte das imagens que perambularam por sua mente nas últimas horas. Cenas que pareciam verdadeiras demais até para a realidade de um dia útil.
Não querendo continuar a rever os caminhos percorridos no sonho, começou a pensar em outras coisas, abriu os olhos, e, com isso, escapou-lhe à mão a corda; dessa forma, o sonho retornou a seu rumo para além da porta inacessível, num movimento tão inevitável como o de um balão de hélio sobe quando a criança se lhe desprende sem querer.
Olhou para os lados com as pálpebras semi-cerradas. Parecia ter sido o primeiro a acordar. Tanto fazia. O sol ainda tímido batia nas cortinas e pedia passagem. Por que tudo aquilo? Tudo isso à noite. Todos esses pensamentos. Todos esses sonhos. Quis crer que a vida era mais simples que o que parecia. Sem qualquer cerimônia, jogou de lado o lençol e, a vestir nada, foi escorregando até o banheiro escovar os dentes. Um novo dia qualquer começava. E como estava quente!

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Feliz dia mundial da fotografia!

- Hoje se comemoram 170 anos da captura da luz.
- Os buracos negros o fazem há muito mais de 170 anos e duvido que tenha um dia mundial para eles.
- Mas os buracos negros só foram descobertos bem depois da captura da luz. Logo, viva o nitrato de prata!
- A descoberta, feita a posteriori, não muda o fato apriorístico. A teoria da evolução, como a conhecemos, teve seu esqueleto traçado no século XIX, o que não quer dizer que não tenha havido evolução até lá. E as pessoas estão comemorando os 200 anos.
- A fotografia captura mas já devolve a luz. Já o buraco...
- Mas quem sabe os propósitos? Vai que eles têm as melhores fotos. Ninguém que foi lá já voltou para as exposições de fotografia que temos aqui.
- Enfim, feliz dia da fotografia!
- Com ou sem flash?

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Conversa com deus[4]

- Não viu o sinal de “não entre”?
- Como você sabia que era eu? Ah, já sei, “eu sou deus...”.
- Eu ia te mostrar aquela câmera, mas essa versão também serve. Por que entrou?
- Achei que era que nem a bíblia, “não entrareis”, tal, mas aqui o céu é lotado.
- Isso porque não fui eu que escrevi.
- Então é que nem em porta de hospital público. Lá diz “não entre”. É onde eles jogam o poker das 22 horas.
- Sei.
- Por que você não eliminou os profissionais de saúde? Isto é, eles não vão contra seu Plano? Tentando prolongar a vida de quem deve morrer ou matando logo quem podia viver.
- Não acha que já pensei nisso? Pesei as coisas. Vocês morrendo mais rápido só iriam encher as filas aqui no céu. Não acha que a bagunça já está grande demais? Pedro faz jornada tripla. O homem é um santo.
- Você o fez assim.
- De propósito, é claro, haha.
- Você pode fazer um alçapão direto para o inferno.
- Hm.
- Deixe que nós mesmos, isto é, os homens, façamos a burocracia no pós-vida. Fazemos isso na Terra há anos.
- E só deu em merda até agora.
- Isso é irrelevante.
- Mas, afinal de contas, o que vocês ganham com isso?
- Ganhar? Nada. É o inferno. Punição e sofrimento eternos. Lembra? Você que disse.
- E você, o que ganha com isso tudo?
- Eu? Nada. Só quero te poupar trabalho e estresse, deus.
- Diga. Quem você quer que eu te apresente?
- Que tal aquela loirinha?
- Perto do portão?
- É, com os cabelos ao vento.
- Aquele é o Hadriel.

Sentir, essência do sentido

Na agonia da existência,
faculta devotar-se
- à capacidade de sentir
e apreciar as sensações.

No inexorável passar do tempo,
a memória aquece o sentido longíquo.
Não é impossível poder
sentir latente controle da realidade
apreensível.

No vórtex de impressões
- que traga a estados contemplativos -
Cabe destruir os meios e sentir,
ou recriá-los para o mesmo fim,
seja no particular
ou no todo.

Expressar é provocar a uma resposta,
que será entendida como estímulo.
Forma um ciclo:
começa e termina na auto-ampliação do sentir
- parece ser essa a ilógica do sentido, causa-em-si.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

The frog conundrum


- Vou te contar uma história, ok?

- Ok.

- Bem, havia um laguinho, onde passava um homem. O homem resolveu atirar uma pedra no laguinho, e atirou. Um sapinho que por ali passava viu um ponto preto voando no ar, esticou sua linguinha e engoliu a pedrinha pensando que era uma mosquinha. Sem saber disto, o sapinho sentiu-se satisfeito.

- Hm...

- Existem muitas maneiras de se analisar essa história. Uma primeira pergunta seria: o sapinho estava errado em sentir-se satisfeito?

- Claro que sim.

- O motivo da pergunta é... Como?

- A pedrinha que ele pensava que era uma mosca era uma mosca só para ele, e não uma mosca real que faz parte de uma verdade universal e absoluta, a qual todos devem aceitar. Que nem o pastor disse lá no culto.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Covinhas

- Como na primeira vez em que nos encontramos.
- No aniversário de Carlos?
- É. Você estava sentado e ele te chamou para te apresentar a mim, e, quando você virou a cabeça para cima, sei lá, teu cabelo “coisou” bem rápido.
- Então você gostou disso?
- Acho que sim.
- É algum tipo de charme. Vou acrescentar à lista.
- Não seja convencido.
- Calma, linda. Foi você quem falou.
- Linda, é? Continue.
- Foi assim que eu te ganhei?
- E desde quando você acha que me ganhou?
- Desde ontem à noite.
- Não conta. Eu tinha bebido.
- Bebeu porque quis.
- Se lembro direito, você me pagou seis doses e outras coisas.
- Mas foi porque você me ganhou.
- Nem tínhamos conversado direito.
- É que tem essa cova.
- Como?
- Você. Essa cova. Aí. É, aí, no cantinho da boca. Dos dois lados.
- Que tem?
- É muito charmoso.
- Você acha?
- Demais. É bonito e charmoso.
- Hmm.
- Instigante.
- Mesmo?
- Claro. Aceita um drink?
- Por favor.
- Aqui. Bom... Você, por acaso... Não teria mais nenhuma, né?
- Nenhuma o quê?
- Cova.
- Fale no diminutivo. Soa menos mal.
- Covinha?
- É.
- Que seja. Você não teria nenhuma, né?
- Fora essa?
- Sim.
- Talvez.
- Posso ver? Antes, quer aceita outra dose?
- Quero sim. E eu não falei que tenho. Só que talvez tenha.
- Onde?
- A covinha?
- A cova. Onde fica?
- Outra dose e eu mostro.
- Onde? Nas costas?
- No banheiro.

domingo, 2 de agosto de 2009

Sétimo dia


Mentiu quem disse que o sábado era o sétimo dia e foi tolo quem acreditou. Alguém precisava, afinal, justificar o fato de um primeiro dia se chamar “segunda”. Ou podem ser culpadas por isso as trevas de um espírito preso. O domingo costuma ser um dia essencialmente contemplativo. Esse dia fatídico, que não parece se diferir de outro qualquer além do fato de preceder um dia de trabalho e não ser, a priori, um dia para labutar, está cercado de certa mística impossível de desvendar. Nesse dia, os espíritos livres, as almas de papel e os cérebros de esponja estão perturbados ou constrangidos por força indescritível. E isso vem de muito longe. No sétimo dia, um domingo não diferente do de hoje, deus, depois de desistir de uma pedra grande demais, sentou sobre um banco em frente ao mar. Abriu os olhos e contemplou o mundo, a absorvê-lo na mais magnânima e sinestésica apreciação estética. E então chorou: havia criado um mundo que unia, sem paradoxos, uma contradição: beleza e dor. E o que fizera não tinha mais como desfazer.