quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O fim do mundo


João Paulo não era a mais querida das pessoas. Declarava-se único. Não só no sentido de que se sobressaía, ou era importante, diferente, mas no sentido mais bruto da palavra. João Paulo alegava que somente ele existia. Todo o resto era fantasia de sua mente. Não existia nada além dele e do vazio, e tudo o que ele sentia era falso. Ele apenas achava que sentia. Nenhuma informação saía do cérebro; tudo se processava ali dentro mesmo: as sensações, sentimentos, impressões... Até as outras pessoas. Só havia João Paulo. Isso lentamente o tornava inescrupuloso e insensível - nas opiniões alheias, claro, para as quais não ligava. Vivia em função de si - e somente de si. Uma noite ele fechou os olhos para dormir. O mundo parou e não voltou a girar mais. João Paulo nunca mais abriu os olhos. Ninguém nunca lhe disse se estivera errado.

domingo, 16 de dezembro de 2007

Concepção


O que é um clipe (ou o que são clips)? Um clipe é muito mais que ele mesmo. Um clipe é a concepção de clipe. Um clipe é a própria idéia de clipe. Não é só uma coisa que serve pra prender papel, limpar unhas imundas e abrir portas em Hollywood. O desocupado que concebeu o clipe em seu berço de criatividade está milionário. Porque as coisas são assim. É de idéias que gira o mundo.

Presentes


Era uma vez uma menina que ganhava tudo o que queria. Era só pensar que já estava praticamente na sua frente. E era uma menina que queria bastante: já nasceu, por escolha própria, num berço de ouro, isso de fato.

Todos adoravam concender seus desejos, dar-lhe presentes. Brinquedos, dos mais variados. Bonecas. Roupas logo depois. Brincos, anéis, pulseiras... E festas, muitas festas. Pedia e já acontecia. Todo mundo lhe dava tudo.

Estava na flor da idade e dos presentes que recebia quando recebeu dum médico a notícia de que ganhara uma poderosíssima doença degenerativa cerebral e que tinha apenas alguns minutos de vida.

(Que é? Se pode a vida, por que não poderia a morte presentear?)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Machado



Filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira, o menino não tinha acesso à educação. Mas sua mãe, prezando pela educação que não tivera, tomava emprestado livros que paravam nas mãos brutas da criança. Pegava os livros, punha-os de cabeça pra baixo, de um lado, de outro, procurava o que fazer com eles. Até que as letras começaram a fazer sentido, e as palavras, frases, e, daí, a mágica, a se formar.


O menino vendia doces na rua para se alimentar - o que, posto dessa maneira, não deixa de ter seu quê de ironia. Ter aquele nível de pigmentação melanínica naquela época era estar condenado a ter as mãos sempre brutas. Não aquele menino, não no sonho dele. Ele não queria ter as mãos toscas para sempre. Queria criar, queria inventar palavras, palavras que encantassem - e, mais, que transcendessem, assim como ele, o tempo em que se encontravam.


Arranjou uma madrinha que cuidou dele. Levou-o para sua padaria, onde, conversando com o padeiro francês, aprendeu nova língua. O agora jovem viu necessidade de deixar aquele lugar que não mais lhe servia. Foi para um jornal. Escreveu até que adquirisse certa fama.


Saiu do jornal, abriu uma loja naquela cidade em crescimento. Vendeu e cresceu. Abriu mais lojas que quebravam as outras menores. Comprou, só para responder ao ego, o antigo jornal onde trabalhava. E uma editora. E livros, muitos livros. Não lia, só os comprava.


Ascendeu socialmente. Comprou a liberdade de alguns homens, fez alguns contratos com alguns homens livres demais e terminou com a mão mais tosca das mãos. O agora senhor matara agora o menino que levava nas costas e queria reinventar o mundo com sua pesada arma de guerra.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Relógio do braço direito


Cinco e quarenta. Eu acho. Olho para o relógio no braço direito. Cinco e quarenta e um. Olho para o da mesa de cabeceira. Cinco e trinta e nove. É, fazendo a média dá cinco e quarenta mesmo. (Meu relógio biológico está bom como sempre).

Levanto, encaro-me no espelho a primeira vez. Lavo as mãos. Cinco e cinqüenta. Tomo um lento banho quente. Seis e um. Olho-me de novo no espelho enquanto tento arrumar o pouco cabelo que me resta. Seis e um e meio. Sigo para o quarto. Visto a cueca, as meias, a camisa, abotôo a camisa, gravata, calça, cinto. Celular. Não gosto dele. Meu braço direito diz que é seis e seis e o celular diz que é seis e sete. Obviamente está errado.

Desço as escadas. Lavo as mãos, frito ovos, como pão integral, bebo suco de caixa e ainda levo uma barrinha de cereais para o trabalho. Seis e vinte. Isso! Bom tempo.

Entro no carro. Seis e vinte e um. Hoje não vou para o trabalho.

Saio do carro, já são seis e cinqüenta e um. É por isso que saio cedo de casa. A rua sempre me atrasa. Odeio atrasos. Cumprimento os funcionários cordialmente. Seu José, sempre bem animado. Seis e cinqüenta e nove. É gente demais com quem falar. Chego na sala. Sete em ponto. Gosto de chegar na hora, nem que seja uma hora mais cedo. Vou lavar as mãos. Tenho tempo, e tudo aqui é muito sujo mesmo.

É minha primeira visita ao psicólogo, pensei. Não sei porque estou aqui, pensei. Tá, eu só venho aqui essa vez. Vim mesmo só pra agradar à velha, lá, que vive insistindo para que eu venha. Assim eu a acalmo. É. Oito e um. A psicóloga não chegou. Odeio atrasos.Vou lavar as mãos.

Folheio a Caras, IstoÉ, Contigo, Veja, Época, Discutindo Literatura, uma revista anarquista de produção local independente, a playboy do mês (depois tive que lavar as mãos)... Oito e dez. Droga.

Depois de cinco intermináveis minutos a pomposa senhora entra com aquele ar angelical de quem não comete pecados. E era assim mesmo que eu pensava. Alguém que trabalha examinando as burradas dos outros e tentando corrigi-las não pode cometer essas coisas, né? Bem, a secretária veio me chamar. Oito e dezesseis. Lavo as mãos e vou.


***


Nove e quarenta e sete. Volto pra casa revoltado. Paguei pra uma puta me dizer por uma hora que eu tenho TOC.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

A noite /1

Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravassada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosseembora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.


(Eduardo Galeano; in: O Livro dos Abraços, p. 90)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Alvarenga Peixoto


Renomado político presenteado com o mesmo nome da figura histórica, também era poeta. Casara-se com Bárbara, mas sentia-se mais amarrado às formas clássicas.
Fazia o que achava melhor para ser um bom marido. Levava sempre Bárbara às suas viagens ao Velho Mundo e ensinava-lhe coisas diversas. Como bom apreciador, recitava diversas poesias. Sempre tinha uma na ponta da língua.
Alvarenga Peixoto, como bom político, ia a diversas reuniões. E, como era bom para sua imagem, levava consigo Bárbara, para quem fazia questão de pagar as maiores belezas - jóias, roupas, cuidados diversos. E ia Bárbara, linda, incomparável, de braços dados a Alvarenga Peixoto. Escutava, paciente, todas aquelas conversas chatas sobre temas que não lhe interessam e que, pensava Alvarenga Peixoto, ela não devia entender mesmo. Mas era a mais lady das ladies onde quer que fosse.
Um dia, aparentemente do nada, Bárbara chegou à sala, encarou Alvarenga Peixoto, que coçava seu oblíquo bigode, por alguns segundos - e disse, com seu jeito sempre delicado:
- Querido, você é um urubu.
E foi só então que Alvarenga Peixoto entedeu poesia.