terça-feira, 28 de julho de 2009

Pontos de vista

Seu Silva tinha muitos amigos naquela pracinha. Conheciam-se há algum tempo, isto é, desde suas aposentadorias, quando se tornou possível freqüentar a pacata e decadente praça naquele antigo bairro próximo da praia. Lá, faziam coisas da idade: jogavam damas, conversavam potoca. Contavam as histórias das maiores aventuras passadas ou sofridas na juventude, de como eram sagazes e escapavam, muitas vezes, ilesos. Bebiam ocasionalmente uma cervejinha - Seu Ferreira lembra que, para quem trabalhou 40 anos e um dia pára, todo dia parece sexta-feira. Olhavam as moças novas passarem e não deixavam de fazer suas gracinhas e estrupulias para chamar atenção e, quem sabe, ganhar um olhar ou piscadela. Isso e tudo o mais, faziam-no para evitar pensar ou reconhecer que envelheciam. Mesmo com as marcas no rosto, mesmo com os costumes e roupas que mantinham - ninguém era tão vaidoso assim. Seu Barbosa fazia questão de pagar passagem inteira no ônibus; Seu Almir jura que nunca pagou meia entrada no cinema; Seu Antônio ia no bar e discutia com quem não acreditava quando ele alegava ter só 54. Diziam que, assim, não se sentiam velhos, e se misturavam às pessoas maduras alguns anos mais novas. Bobagem, pensava Seu Silva. Há anos ele se locomovia de graça em transporte público, que pagava meia entrada no cinema ou 50% das diárias de hotéis - mesmo antes de completar a idade permitida para tanto. Assim, dizia ele, pensava voltar à tenra época em que era estudante e o mundo se abria em oportunidades e conhecimento. Achava que era mais feliz assim.

domingo, 19 de julho de 2009

Exame

- Bom, meus parabéns, você chegou na última etapa. Como você já deve saber, esse é o exame psicológico.
- Sim, eu sei. Me preparo para este concurso há 15 anos.
- Ótimo. Então, primeira pergunta: você é doido?
- Não.
- Louco?
- Não.
- Insano?
- Não.
- E excêntrico?
- Já me chamaram assim. Mas não.
- Você toma remédio controlado?
- Não. Mais. Não mais.
- Por que suspendeu?
- Enchi.
- Hm. Ok, então, última pergunta: você já consumiu ou consome drogas?
- Sim.
- Vamos tentar de novo: você já consumiu ou consome drogas?
- Sim.
- Drogas ilícitas.
- Sim, já disse.
- Bom...
- Você devia me passar.
- Como?
- Usei outra estratégia.
- Qual?
- Sinceridade. Você devia me passar.
- Por quê?
- Porque isso é uma qualidade em falta no serviço público.
- É verdade. Você não está drogado agora, está?
- Talvez.
- Tá, vou fingir que não ouvi isso...
- Eu estou.
- ... Seja bem vindo ao serviço público!

sábado, 11 de julho de 2009

Papos contemporâneos

Diz: responde!!
Diz: desculpa, tava escrevendo uma resposta na janela da minha filha.
Diz: como assim? a Júlia?
Diz: a única que nasceu até agora.
Diz: mas ela não tem 3 anos?
Diz: é, e eu já tinha pedido pra ela me ensinar a operar esses mecanismos via internet há mais tempo.
Diz: "i see babies cry, i watch them grow..."
Diz: "... they'll learn much more then i'll ever know"
Diz: ao menos a música não muda.
Diz: era um remix.
Diz: entendo.
Diz: olha, recebi uma mensagem da minha filha.
Diz: a Júlia também manda sms?
Diz: não, a Camila. ela já queria avisar que só nasce se o hospital tiver wifi.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Novo papa diz: "Igreja encontrou seu caminho"

Depois da súbita morte de Bento XVI e da ascenção do novo papa, que decidiu se chamar João, o que faz delo o XXIV, muitas mudanças severas se passaram na Igreja Católica. O papa revolucionário encabeçou um programa que resolveu chamar de "O Plano da Mudança, UI", em que o "U.I." quer dizer 'Universal e Institucional", e consiste, basicamente, em mudar a estrutura da Igreja.
O papa João XXIV nasceu em 1948, em Roma, mas veio logo cedo para o Brasil com os pais, tendo se instalado em São Paulo. Quando perguntado sobre seu nascimento, o papa confessa: "eu renasci na década de 70, quando me juntei aos padres do nosso seminário e decidimos nos dar... toda a liberdade!". Eleito cardeal há alguns anos, sempre retornava ao Brasil para participar de manifestações públicas em favor dos direitos das minorias, pelos quais lutava em vários países do mundo. A imagem do então cardeal era ainda mais freqüente nas manifestações do orgulho homossexual.
Com o novo programa do Vaticano, a intenção é manter boa parte das antigas leis e tradições, mas só depois de serem revistas. Dentre as antigas tradições, ainda se proíbe aos sacerdotes o casamento. A justificativa foi reafirmada: um padre não pode ter filhos. "Sim", afirma João XXIV, "mas isso não impede que ele mantenha relações que não levarão à gravidez". Assim, fica permitida a prática homossexual entre os sacerdotes. Manifestações mundo afora foram organizadas: a notícia foi recebida com imenso louvor. Analistas confirmam que, por um lado, foi uma medida que reconheceu que havia afastamento de muitos cristãos da Igreja e visava a não só os atrair de volta, como conquistar o público homossexual de maneira geral, que agora encontra uma religião que o aceita. O papa João XXIV conclui: "antes dessa reforma, como esperavam que a gente se desse a Jesus?".

Fonte: Arial 11.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

O embate entre direito interno e internacional

A questão que se põe entre o direito interno e o internacional pode ser comparada a um problema no elevador. Num prédio público, um senhor impaciente aguarda as portas se fecharem para seguir subir ao último andar. À distância, ele vê duas senhoras se aproximando, a passos rápidos, na tentativa de evitar perder a viagem. Em parte por consideração, em parte por educação, ele, que também gostaria que outros agissem da mesma forma com ele, não aperta o botão de fechar, embora também não aperte o de manter as portas abertas. Uma das senhoras chega e põe a mão na frente do sensor do elavador.
A situação está estabelecida: ambos, o homem e a mulher, desejam subir. Podem subir juntos ou separados - a ele, não agrada ter que a esperar; a ela, não agrada ir depois dele. Ambos querem operar o elevador, que é o Estado. O homem dentro do elevador é o governo de um Estado, e a senhora representa um outro. O direito internacional é aquele que agiu na cabeça do senhor e o fez ter certo nível de complascência. O direito interno é aquele que o dá a possibilidade de agir da maneira que julgar melhor, apesar de todas as possíveis conseqüências. O direito internacional está expresso no sensor do elevador, que capta a necessidade de ambos, mas privilegia a coordenação da ação dos dois - afinal, o elevador já vai subir mesmo, por que não levar logo a ambos? O direito interno está expresso na vontade realizada do senhor: ele aperta o botão de fechar as portas.
A justiça continua cega. No embate entre as duas esferas, sempre alguém sairá perdendo. Neste caso, a mão.



domingo, 5 de julho de 2009

Pós-contemporaneidade

- As coisas mudam...
- O que quer dizer?
- Na época dos meus avós, era comum conhecer a maioria das pessoas que moravam nas vizinhanças, fosse um bairro ou vilarejo.
- É verdade.
- Meus pais, já um pouco avançados em idade, falam, saudosos, que conheciam todos os vizinhos com cachorro.
- Pelo fato de que saíam à rua pra passear, e encontravam e davam-se bom dia, né?
- No caso do meu pai, sim. Minha mãe não tinha cachorro, mas tinha o sono leve. Cada noite ela lembrava de todos os vizinhos que tinham cachorro.
- Meus pais criavam peixe.
- Ao menos conheciam o cara da venda que fornecia a ração.
- De fato.
- Ninguém hoje costuma lembrar que tem vizinho. Só quando ele dá festa, e só para ficar amargurado ou reclamar do barulho.
- É, as coisas mudam...
- O que quer dizer?
- Antigamente, quando nossos avós eram jovens, era romântico e bonito dizer “eu te amo”.
- Com a revolução sexual, isso passou a ser “eu te desejo”, e, depois das militâncias feministas, “eu te respeito”.
- O que você acha de hoje?
- Me incomodo com tanto pragmatismo.
- Eu também. Minha filha decidiu morar com o namorado quando ele falou: “tudo bem, eu posso comprar o pão hoje, já que você vai trabalhar até mais tarde”.