quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Tempo


- Estão vendo aqui, meus queridos? Essa era a foto de vovô no primário. Esses aqui eram meus coleguinhas. Perdi contato com eles logo que saí de lá. Fui pra outro colégio. Esse aqui, ó. Aqui já sou eu no ginásio. Eu e a turma da pelada. Tem umas das meninas ali atrás também. Apesar de jogarmos sempre juntos, nunca nos demos muito bem, não. É que eu era meio introvertido nessa época, sabe? Bem, aqui eu já tou mais velho. Olha como meu palitó era bonito. Meu avô que me deu. Já pensou, meus filhos, meu avô? O avô do avô de vocês? Pois é. Já era um homem bem velhinho... Mas gostava tanto de mim... Assim como eu gosto de vocês, claro. Continuando... Esses aqui eram meus colegas de turma do científico. É... Ninguém gostava de mim. Essa aqui eu já tava na faculdade. Eram gente boa. Mas desatinados, sabe como é? Eu não andava muito com eles. Mamãe não deixava... Na verdade, eu é que não queria mesmo. É... Não, essa não. Pula essa. Tou feio nela. Ah, essa aqui. Eu e o pessoal do escritório. ... Todos me odiavam. Depois de um tempo, eu que assumi a chefia de lá. Ah, bons tempos. Booons tempos. Bem, agora vão, meus filhos, que a mãe de vocês tá chamando. É... Muito tempo se passou. Juntei muitos inimigos e fiz muitas inimizades desnecessariamente. Pensando bem, tudo o que me resta fazer agora é descobrir os telefones deles e ligar pra saber se eles já morreram.

Urubus e sabiás


"Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam... Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza eles haveriam de se tornar grandes cantores. E para isto fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar nos outros. Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamam de Vossa Excelência. Tudo ia muito bem até que a doce tranqüilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida. A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas para os sabiás... Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa , e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.


— Onde estão os documentos dos seus concursos? E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvessem. Não haviam passado por escolas de canto, porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam simplesmente...

— Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem.

E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás...

MORAL: Em terra de urubus diplomados não se houve canto de sabiá."


("Estórias de quem gosta de ensinar — O fim dos Vestibulares", editora Ars Poetica — São Paulo, 1995, pág. 81.)

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Pizza e os Modos de Produção

Tenhamos um texto didático, uma aula dinâmica, até mesmo interdisciplinar. Envolvamos a perfeita química da pizza aos modos de produção mais comuns aplicados ou pensados ao longo da história do homem.


Comunismo Primitivo

Nessa época, os machos corriam atrás das pizzazinhas, das maiores às menores, enquanto as mulheres cuidavam do cultivo dos condimentos. Quando as pizzazinhas acabavam, eles migravam para outra região que continha mais delas. Eram todas divididas igualmente pelo grupo. Isso quando um não lutava com outro por sua fatia, e o vencedor, de quebra, ainda virava o chefe da tribo. Essa divisão de poder terminou gerando uma maior desigualdede de poder, o que levou ao...

Escravismo

Muito utilizado na Grécia e na Roma Antiga. Aqui eu sou dono de tudo. A pizza, o ingrediente, a terra, você que produz... E eu ainda como a pizza. Não é bom? Os escravos não acharam. Uma série de transformações históricas nos levou ao...


Feudalismo










Não, aqui eu não sou mais dono de tudo. Apenas da terra, do que é produzido nela e da pizza. Você não é dono de nada, embora more numa terrinha qualquer e esteja preso a ela. Você tem direito a comer um pouco da pizza, mas uma vez por semana é você quem vai fazê-la pra mim. Ninguém gostou disso também. Todo mundo queria muita coisa pra si, e foi aí que surgiu o...



Capitalismo






Aqui você pode ter onde morar. Eu não ligo mais. Agora o fato é que você vai trabalhar na minha terra, na minha fábrica ou na minha loja. Seja colhendo os ingredientes, seja fabricando a massa ou vendendo a pizza pronta. Eu quero a pizza toda pra mim, e quando mais pizza eu tiver, mais pizza eu comerei. Pizza, pizza, pizza. Naturalmente, é o mais falho dos sistemas, mas é o que está aparentando ser mais sustentável graças à propaganda. Os comedores de pizza alegam que todos comem pizza, e mesmo você não comendo pizza e reconhecendo isso, não faz nada a respeito. Em resposta a ele, surgiram outros, mais avançados.



Anarquismo



Alguém fez a pizza. OBA! Vamos atrás do cara bater nele e pegar o que conseguirmos!




Socialismo







Todos produzem a pizza e entregam que eu devolvo pra todo mundo. (He-he).




Neoliberalismo




Ok, não é bem um modo de produção. Mas que inverte valores, ah, isso inverte.



...




Considerações a parte, isso só me faz pensar que o ser humano é o único inseto que inventa seu próprio inseticida. Inventou a roda, foi atropelado por ela. Inventou a bomba, foi explodido por ela. Inventou a sociedade, foi esmagado por ela. Inventou a pizza... Bem...


domingo, 25 de novembro de 2007

Homem da sacola

Praia do Futuro – há uns, talvez, vinte dias. Não sei. Hoje não tenho mais a noção do tempo que passa. Morava sozinho, e gostava de esporadicamente ir a praias – ia sozinho mesmo. Levava sempre sua sacola com os pertences nessas ocasiões. Odiava o apelido que ganhara por isso. Era o homem da sacola para os pivetes que, ousadamente, ainda me pediam trocados.
A última dessas idas não tinha sido diferente neste aspecto; tudo corria absurdamente comum até quando reencontrou um de seus amigos ainda dos tempos da faculdade, o que considerava o melhor deles, com quem perdera contato – e que assimilara o hábito de aproveitar o vasto litoral. Estavam ambos sozinhos, e passaram o dia juntos, relembrando os bons tempos.
Hora da fome, trocaram de roupa e sentaram para comer numa daquelas barracas adjacentes. Beberam aos bons tempos. E às mulheres. Ah – as mulheres daquele tempo. (E os bons tempos com as mulheres daquele tempo). Dona Rosa, Jasmim, Violeta, Margarida... O jardim inteiro.
Despediram-se e cada um seguiu seu caminho. O homem da sacola chegou em casa e deu-se conta: esquecera sua sacola. A crise que rapidamente lhe abateu fez com que desesperadamente fosse à procura de sua sacola, mesmo não contendo nada de grandes valores: apenas calção, toalha e um óculos de sol velho.
Metódico que era, refez todo o percurso do dia. Foi das águas da praia já enegrecidas pela pouca contribuição da lua ao lugar onde bateram bola, até que chegou ao boteco. A garçonete lembrou-se do peculiar homem ainda em traje de praia, apesar da tarde hora. Sorriu. Percebi que o senhor tinha esquecido e guardei aqui, pode pegar. Obrigado. Sorriu de volta. Segurou as alças – agora recuperara sua identidade, e voltou contente pra casa.
Chegado em casa ia guardar os itens que há pouco recobrara. Desfez o nó usual. Ia já retirar o conteúdo quando deparou-se com um bilhete. Me desculpe pelo roubo. Me ligue. O número estava logo embaixo, mas não dera muita atenção. Retirou os itens. A toalha. Os óculos. A sunga não estava lá. Puxou o último item: a peça de baixo de um biquíni.
Eu sentia sono agora. Ia deitar-me. Me ligue...

domingo, 11 de novembro de 2007

Como o seio...

Ai, que mau teórico eu sou! Não admira que rigorosos professores de pós-graduação freqüentemente repreendam seus orientandos por incluir citações minhas nos seus projetos de tese! “Rubem Alves não é cientista. Ele é um escritor!” Eles estão cobertos de razão. Não sou cientista. A ciência pensa através de conceitos abstratos. Eu penso através de imagens. São imagens que me fazem pensar. Mais do que isso: é através das imagens que tento ensinar. E ao convocar minhas idéias para escrever esse artigo foram imagens que acudiram ao meu pedido de socorro.

Eu me vi viajando com meus filhos pequenos de 8 e 6 anos de idade. Do lado de fora do carro cenários deslumbrantes, uma festa para os olhos. Eu, pai educador, queria contribuir para a educação dos sentidos dos meus meninos. Mostrava-lhes os cenários. Queria que eles aprendessem a alegria de ver. Mas eles não viam. Não demonstravam o menor interesse pelas longínquas montanhas que me tiravam o fôlego. Para me apaziguar e para que eu não os chateasse mais, talvez dissessem: “Que legal!” Mas era da boca para fora. Logo voltavam ao seu foco de interesse: o espaço apertado do banco de trás do carro onde se encontravam. E ali ficavam absortos, brincando com seus carrinhos de plástico. Custou-me tempo para compreender que as crianças vêem com as mãos. O puro “ver” não lhes é suficiente. O “ver” só lhes interessa como meio para se tocar um objeto. Pegar para ver.

É o tato que dá sentido à vista. O nenezinho vê, estende seus braços, pega o objeto e o leva à boca. A boca uma dupla função. Primeira, ela suga o leite do seio da mãe. Função prática. O seio como objeto da “caixa de ferramentas”. Segunda, a boca sente a maciez deliciosa do seio. Prazer tátil. O seio como objeto da “caixa de brinquedos”. Mesmo depois que o seio seca, cessando assim sua função prática de alimentar, a criança quer continuar a sugar. Por que esse gesto inútil? Porque a sensação tátil é gostosa. Essa relação primitiva boca-seio contém toda uma teoria metafísica: o mundo é comida. Mais do que comida; o mundo é macio. É por isso que aquele que ama deseja beijar o seio da mulher amada. Parodiando Santo Agostinho: “O que é que beijo quando beijo o seio da mulher amada?” Rilke via, no rosto da amada, estrelas e constelações tranqüilas. Beijo o seio, sim, mas também uma outra coisa: um mundo que deve ter a maciez do seio. Os ursinhos de pelúcia que as crianças abraçam – e os travesseiros macios e perfumados que abraçamos – não contém eles uma lição de metafísica semelhante, uma teoria de como o mundo deveria ser?

Bachelard chama a nossa atenção para a “obsessão ótica” da nossa tradição científica. A palavras “teoria” vem do Grego “theoria”, que quer dizer “contemplar”, “olhar”. Mas, para se ver, é preciso que o objeto esteja distante dos olhos e, portanto, do corpo. Nossa tradição separou a visão do toque. As crianças se recusam a esse corte. Nas lojas de brinquedos os pais conscientes dizem aos filhos pequenos: “Mãozinha para trás...” Eles sabem que, nas crianças, a visão quer tocar. Bachelard nos pergunta, então, se a matéria não tem uma realidade que só pode ser conhecida pelo tato. O jeito de cumprimentar, de abraçar, não dá a conhecer uma pessoa? Aquele “toque” no braço de Fernando Pessoa ( artigo “ Tato” ) o levou a uma experiência de mundo. É assim que ele termina o seu poema: “Assim a brisa nos ramos diz uma imprecisa coisa feliz...” Não é o toque apenas pelo prazer. É o toque para aprender.

Veja os livros, por exemplo. Todos sabem que os livros são para ser lidos. Eles são dados à visão. Mas antes de gozar a sua leitura, eu gozo um livro como objeto tatil. Eu o seguro nas minhas mãos, sinto a textura da capa, das folhas. Nós os conhecemos primeiro com as mãos. Há livros que pedem para serem acariciados, alisados. Minha mão alisando um livro: essa experiência pode provocar meu desejo de lê-lo, ou não.

O tato contém um saber. Talvez, uma provocação ao saber. Faz-nos pensar. Teríamos então de pensar o tato como uma das experiências essenciais que devem acontecer no espaço escolar. O tato incita a inteligência. Há muitos pensamentos que brotam das mãos. Uma mão ferida pensa um martelo. Por que haveria o cérebro de pensar o martelo se a mão não estivesse ferida? Uma mão que segura um cassetete tem, necessariamente, de fazer o cérebro pensar em golpes, da mesma forma como um revólver não mão, ainda que sem balas, nos obriga a fazer pontaria. A ostra constrói a pérola por causa do tato. O grão de areia a faz sofrer. Seu corpo então pensa uma coisa lisa que não a faça sofrer...

Nunca li nada sobre a relação entre o tato e a inteligência. Essas são minhas primeiras idéias. Não sei como ligá-las ao espaço escolar. Mas sei que o espaço escolar deve ser como o seio. Deve dar leite e deve ser macio. Como o seio da Da. Clotilde...


(Rubem Alves)

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

(em) Minutos




Estava, naquele dia, junto à janela. Não era o costumeiro - queria experimentar novos ares. O passeio ia bem. Regular, na verdade. A mesma velha cidade.
Também não costumava observar os que entravam e saíam. Dessa vez, entretanto, não era uma das mesmas velhas pessoas que entrava. Exalava primaveras e violetas. Sentou-se na minha frente.
Seria indelicadeza não notar que traços suaves - até finos - tinha. Formatos bem calculados, simétricos. Madeixas escarlates, fazendo incendiar até ao mais desavisado. Um quase imperceptível cordão dourado que se perdia em sua candura angelical.
Pensei em tocar-lhe. Dizer-lhe o quanto lhe queria. Não, pensei, não gostaria que me perturbassem, fosse eu.
Era o divino, eu, o profano. Este não ousa aproximar-se daquele. Um teme sua pureza. Sua perfeição. O outro, seu desprezo. Mas como um ímã, atraem-se. Temem-se e vivem em profunda conjunção carnal. Completam-se, enfim.
Assim éramos. Embora provavelmente só eu o percebesse. Pensava em como éramos iguais. Em como pensávamos iguais. Mesmas crenças - ou descrenças, amores, ódios, medos e modos. Em como nos beijaríamos, apaixonados, ao final de uma comédia romântica. Mas essa era minha tragédia grega. Eu estava a ser castigado por um crime que não cometera. Diria Sófocles ter algo a ver com males cometidos pelos meus antepassados. Pois saiba que, naquele momento, sem hesitação, trocaria todos os antigos espíritos que, biologicamente falando, permitiram minha existência por um momento nosso a sós.
Tornar a amar fez-me bem. Amar profundamente; tão profundamente que o ato de fazê-lo torna-se o real adorado; amar o fato de amar. Ou só o poder amar.
Amei, sonhei e pensei o mundo em instantes. Também em instantes o ônibus parou, ela desceu, e me dei conta de ter me apaixonado, sofrido, matado e morrido em tão breve espaço de tempo. O ônibus retomou seu trajeto logo em seguida e levou todo o amor que poderia ter sido - e que não foi.