quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Avanço do "intelecto"?

Substituto da Religião

Julga-se fazer honra à filosofia, ao propô-la como um substituto da religião para o povo. De fato, na economia espiritual é necessária ocasionalmente uma ordem transitória de pensamento; assim, a passagem da religião para a concepção científica é um salto violento, perigoso, algo a desaconselhar. Nesse sentido, há razão nessa recomendação. Mas, finalmente, dever-se-ia admitir também que as necessidades que a religião satisfez e que agora a filosofia deve satisfazer, não são imutáveis; essas necessidades podem ser enfraquecidas e extirpadas. Basta pensar, por exemplo, na miséria da alma cristã, nos gemidos diante da corrupção interior, na preocupação com a salvação - tudo noções que não derivam senão de erros da razão e que não merecem satisfação nenhuma, mas sua destruição. Uma filosofia pode servir em ambos os sentidos, tanto porque satisfaz essas necessidades como porque as elimina, pois são necessidades aprendidas, limitadas no tempo, que repousam em hipóteses contrárias às da ciência. Nesse caso, o que deveria servir de transição é muito pelo contrário a arte, a fim de aliviar a menos alimentados pela arte do que pela filosofia metafísica. A partir da arte, pode-se em seguida passar mais facilmente a uma ciência filosófica realmente libertadora.

(Nietzsche, F. - Humano, demasiado humano - ed. Escala)


Como Nietzsche descrevera há 130 anos, a filosofia seria o meio de "libertação" das necessidades religiosas que tanto criticara. Na sua época, o mundo se expandia fortemente com o avanço da indústria capistalista e a razão ganhava terreno.
Atualmente, com todo o avanço da ciência, as religiões tremem em suas bases quando são desmacarandos seus mistérios - alimentados durante toda a evolução humana, e "catequisado" por elas.

"De fato, na economia espiritual é necessária ocasionalmente uma ordem transitória de pensamento". Essa ordem incluiria a ciência - assumindo o papel de carrasco perante os religiosos, matando dogmas e mais dogmas a cada dia. Os religiosos, principalmente os ocidentais, não vêem que há muito já não conseguem se manter e é só uma questão de tempo para que se torne verdade o que Nietzsche proferizou. Podemos ver essa liberdade no Velho Mundo - o mesmo que Nietzsche viveu -, atual, em que as sociedades estão cada vez mais "livres".

Entretanto, "dever-se-ia admitir também que as necessidades que a religião satisfez e que agora a filosofia deve satisfazer, não são imutáveis;". De fato, uma vez que a ordem de "libertação" deve obedecer a sequência de transição, algumas necessidades religiosas devem ser satisfeitas pela sua substituta - a filosofia -, até que essas já não sejam precisamente "necessidades". Os exemplos citados por Nietzsche são só alguns pontos que os seres que já tenham se libertado das correntes religiosas não sentirão mais.

Ao final do texto, ele cita a arte como uma auxiliar nessa transição, já que essa liberta a consciência sobrecarregada, ao invés de alimentá-la. Não determina limites ao homem, enquanto a filosofia metafísica o amedontra. Torna-o livre, enquanto a outra aprisiona em dogmas irracionais.

Obs.: A Encyclopædia Britannica estima que cerca de 2,5% da população mundial se classifica como ateísta. Parte considerável das pessoas, cerca de 12,8%, tende a se descrever como "não-religiosa". Enquanto boa parte desses 2,5% se encontra na Europa, é importante ressaltar que da população, o "povão" dos países em transição e de terceiro mundo - maioria da população, a exemplo da China, da Índia e do Brasil, que totalizam mais de 30% da população mundial - não tem um nível intelectual "necessário" para aderir à ciência, à arte e à filosofia. Talvez isso já seja uma estratégia política-administrativa dos governantes.

Um comentário:

Kondlike disse...

Gostei da análise detalhada do texto: trecho por trecho. Na minha opinião, achar que a filosofia ou ciência substituirá a religiosidade hoje em dia é ingenuidade. O próprio Nietzsche, em seus textos mais maduros, desconstruiu a fé que o homem tanto tinha na sua racionalidade.
Contra o dogmatismo judaico-cristão de sua época, Nietzsche foi um crítico ferrenho, contribuindo até para que a teologia ocidental se reformasse para se adaptar melhor aos novos paradigmas sociais e filosóficos.
Sobre a onda de ateísmo que surge no mundo todo, acredito que isso seja uma substituição de fé saudável. Não posso dizer se aprovo ou não, só espero que não se crie um movimento ateu organizado, como sugere Richard Dawkins.