quarta-feira, 26 de março de 2008

Che Guevara: A consciência do homem no centro da transformação da sociedade

“A revolução se faz através do homem, mas o homem deve forjar, dia-a-dia, seu espírito revolucionário.” (Che Guevara, “O socialismo e o homem em Cuba”.)
Este artigo é uma contribuição ao estudo do pensamento de Che Guevara acerca do papel do homem na transformação histórica. Seus escritos salientam que a construção do socialismo não pode avançar somente pelas transformações no modo de produção, na base econômica. E ressaltam: “Para construir o comunismo, simultaneamente com a base material tem que se fazer o homem novo” (GUEVARA, 2005: 51). Sua concepção elucida, sobretudo, o papel do homem como sujeito da transformação histórica, entendido como ser social que transforma a si mesmo concomitantemente com a transformação da sociedade.
A temática do “homem novo” é discutida por Che Guevara em vários artigos e discursos, mas é especialmente num texto intitulado “O socialismo e o homem em Cuba” que as premissas fundamentais de sua concepção sobre essa temática aparecem de maneira mais elaborada:
“Acredito que o mais simples é reconhecer sua qualidade de não-feito, de produto não-acabado. As taras do passado são transmitidas, no presente, na consciência individual e há necessidade de se fazer um trabalho contínuo para erradicá-las. (…) É necessário que se desenvolva uma consciência na qual os valores adquiram categorias novas. A sociedade em seu conjunto deve transformar-se em uma gigantesca escola.” (GUEVARA, 2005: 50-51)
Na passagem citada acima, Che elucidou, em princípio, três elementos centrais. Primeiro, ele afirma que a construção do “homem novo” não confere um processo finalizado – nem poderia, já que a construção do novo homem se dá concomitantemente às transformações do modo de produção. Ou seja, junto com a nova base econômica, com o desenvolvimento das forças produtivas e as novas relações de produção, deve-se ir desenvolvendo a consciência de um homem comunista.
Segundo, seu pensamento elucida que a transição é marcada pelo antagonismo e pelo conflito entre as novas relações sociais que subsistem ao mesmo tempo com as antigas taras do capitalismo. No socialismo, deve-se suprir o legado da velha sociedade, negá-la e superá-la. Os mais terríveis adversários, para a conscientização das massas, são a ambição demasiada e os hábitos egoístas do capitalismo; a força do costume individualista burguês, que busca satisfazer apenas interesses individuais. Esse legado é o maior inimigo da nova sociedade, um gigantesco oponente no processo de construção do “homem novo” e da sociedade socialista. Che explica esse processo, mediante o exemplo de uma pessoa que se recupera de uma enfermidade:
“É como um mal que tivera, inconscientemente, uma pessoa. Quando acaba o mal, o cérebro recupera a claridade mental, mas os membros não coordenam bem seus movimentos. Nos primeiros dias, após sair do leito, o andar é inseguro; e, pouco a pouco, vai adquirindo a nova segurança. É neste caminho que estamos.” (GUEVARA, 2005: 22).
Nesse trecho, Che Guevara diz que a estrutura social de um regime em transição possui diversos defeitos e não está inteiramente liberta das seqüelas herdadas da antiga sociedade. Essa fase de transição é, em sua essência, contraditória, pois traz consigo o conflito direto entre o novo e o velho que permanece.
Quanto à terceira questão, Guevara ressalta a necessidade de trabalhar a consciência de cada indivíduo para que adquira novos hábitos e valores. Sua concepção atenta de que o homem deve sobrepujar suas ambições individualistas burguesas em favor de interesses coletivos que representem verdadeiramente todo um grupo e não interesses particulares.
“Nós não podemos estimular e sequer permitir atitudes egoístas nos homens, se não quisermos que os homens sigam o instinto do egoísmo, da individualidade. (…) O conceito de uma sociedade superior pressupõe um homem desprovido desses sentimentos, um homem que tenha subjugado esses instintos.” (CASTRO, apud FERNANDES, 1979: 154).
Fidel compartilha das mesmas convicções de Che. Essa citação repousa sobre a análise da necessidade de sobrepor aos homens novos sentimentos, valores e ideais que contemplem o coletivo. Isso implica que o homem que veio de uma sociedade individualista deve alcançar um alto grau de consciência social; em outras palavras, ele deve estar impregnado de sentimentos de amizade, fraternidade, compreensão, etc. Che salienta: “Deixe-me dizer, com o risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro está guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar num revolucionário autêntico sem esta qualidade” (GUEVARA, 2005: 62). Nesse sentido, o comunismo constitui uma sociedade de irmãos. O pensamento de Che Guevara defende o valor do humanismo, do homem que compreende e cumpre seu compromisso e dever perante a sociedade em construção e transformação.
O cubano Fernando Martinez Heredia, em sua obra Ché, el socialismo y el comunismo, afirma que: “En la concepción del Che la conciencia es la palanca fundamental, el arma para lograr que las fuerzas productivas y las relaciones de producción sociales dejen de ser medios para perpetuar la dominación, como era en el capitalismo” (HEREDIA, 1989: 70). E Luiz Bernardo Pericás, em sua tese Che Guevara e o debate econômico em Cuba, acrescenta que “O importante seria, portanto, transformar esse homem individualizado no homem socialista, que precisaria da comunidade para desenvolver sua individualidade” (PERICÁS, 2004: 170).
A concepção de Guevara retoma o pensamento de Marx, segundo o qual a consciência não é pura, mas influenciada pelo meio social, pela relação dos homens com outros homens. “A consciência é, antes de tudo, mera consciência do meio sensível mais próximo e consciência de uma interdependência limitada com as demais pessoas e coisas que estão situadas fora do indivíduo que se torna consciente” (MARX; ENGELS, 2004: 23). A consciência é, em sua origem, um produto social, nascido das relações humanas, ou seja, do seu meio sensível mais próximo. Partindo dessa afirmação exposta por Marx, Che argumenta em favor de uma transformação da consciência desse homem que vem do capitalismo, mediante a produção da vida material, por meio de suas relações sociais com outros homens, atuando em sociedade.
O homem socialista aparece, para Guevara, como uma superação dialética do homem capitalista. É a negação do homem alienado pelas relações de produção regidas pelas leis do Capital. As características desse homem estranhado foram bem-colocadas por István Mészáros: “O ‘verdadeiro homem’ – a ‘verdadeira pessoa humana’ – não existe realmente na sociedade capitalista, salvo em uma forma alienada e reificada na qual o encontramos como ‘trabalho’ e ‘capital’ (propriedade privada) opondo-se antagonicamente” (MÉZÁROS, 2006: 106).
Portanto, é importante elucidar que Guevara segue a concepção marxista que rejeita a idéia de que as características e os valores dos homens são dados, fixados pela natureza humana. Dessa maneira, “o homem não é, ele se torna” pela produção e reprodução da sua atividade material. Marx parte do pressuposto ontológico de que o homem é uma parte específica da Natureza. E, assim, a consciência do homem está em revolução constante, por meio de ações práticas que estão estreitamente ligadas à sua atividade. Cabe aqui citar, novamente, uma passagem clássica de A ideologia Alemã: “Os homens, ao desenvolverem sua produção material e relações materiais, transformam, a partir da sua realidade, também o seu pensar e os produtos do seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2004: 52).
É essa ação humana, do homem entendido como “ser social transformador”, que modifica as condições objetivas, que muda a realidade concreta, que muda as relações de produção e reprodução. Portanto, mediante o antagonismo existente entre a classe burguesa e proletária, as contradições das relações de produção e das forças produtivas e o malogro do Estado dominante, os homens transformam a sociedade, a base econômica e, concomitantemente, seu pensamento, suas idéias; ou seja, sua consciência também ganha nova forma.
Se o homem é sujeito da transformação histórica, a revolução proletária só pode se concretizar como um ato consciente. Essa condição parte de uma premissa fundamental do socialismo científico, exposta por Engels:
“A própria existência social do homem, que até aqui era enfrentado com algo imposto pela Natureza e a História, é, de agora em diante, obra livre sua. Os poderes objetivos e estranhos que até aqui vinham imperando na História, colocam-se sob o controle do próprio homem. Só a partir de então ele começa a traçar a sua história com plena consciência do que faz. E só daí em diante as causas sociais postas em ação por ele começam a produzir predominantemente, e cada vez em maior medida, os efeitos desejados. É o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da liberdade” (ENGELS, 2003: 65).
Sobre essa importante problemática em discussão, Michel Löwy acrescenta que “A especificidade histórica da revolução proletária – não como um ato único, mas como processo permanente que conduz da luta pelo poder à instauração do comunismo – é que ela é, pela primeira vez, um empreendimento humano plenamente consciente” (LÖWY, 2003: 37).
O entendimento dessa premissa é extremamente importante para a compreensão da ênfase dada por Che Guevara à construção de uma nova consciência. Assim, a construção do socialismo, negação e superação do capitalismo, só é possível por meio da atuação consciente de um “homem novo”. O homem socialista transforma a Natureza, a sociedade e a si mesmo num plano que almeja, como fim último, sua plena libertação como ser social.
Verificamos, então, que Che Guevara ressalta, em seus estudos, o papel decisivo da ação consciente e organizada do homem para o desenvolvimento do projeto socialista. Sem o “homem novo”, uma nova sociedade não pode surgir. Novas idéias e valores são fundamentais para a construção de uma nova sociedade, que somente dessa forma pode avançar no processo de emancipação do homem, e romper definitivamente as correntes da alienação.

Bibliografia

ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Moraes, 2003.
FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: A Revolução Cubana. São Paulo: Tao, 1979.
GUEVARA, Che. Socialismo e juventude. São Paulo: Anita Garibaldi, 2005.
HEREDIA, Fernando Martinez. Ché, el socialismo y el comunismo. Casa de las Américas: Habana, 1989.
LÖWY, Michel. O pensamento de Che Guevara. 5ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2003.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2004.
MARX, Karl. O dezoito brumário de Louis Bonaparte. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2000.
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.
PERICÁS, Luiz Bernardo. Che Guevara e o debate econômico em Cuba. São Paulo: Xamã, 2004.
Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/066/66prado.htm
Esta página faz parte do sítio Pausa para a Filosofia.
Trata-se de um texto dirigido a Carlos Guijano, do semanário Marcha, Montevidéu, Uruguai, 12 de março de 1965.
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“Na visão de Marx, o homem não é nem ‘humano’, nem ‘natural’ apenas, mas ambas as coisas: isto é, ‘humanamente natural’ e ‘naturalmente humano’, ao mesmo tempo. Ou, ainda, num nível mais elevado de abstração, ‘específico’ e ‘universal’ não são opostos entre si, mas constituem uma unidade dialética. Ou seja, o homem é o ‘ser universal da Natureza’ somente porque ele é o ‘ser específico da Natureza, cuja especificidade singular consiste precisamente em sua universalidade singular, em oposição à parcialidade limitada de todos os outros seres da natureza’. (…) O ‘ser-por-si-mesmo da natureza do homem’ marxista (…) não é, por natureza, nem bom, nem mau; nem benevolente, nem malevolente; nem altruísta nem egoísta; nem sublime, nem bestial etc.; mas, simplesmente, um ser natural cujo atributo é a ‘automediação’. Isso significa que ele pode fazer com que ele mesmo se torne o que é em qualquer momento dado – de acordo com as circunstâncias predominantes” (MÉSZÁROS, 2006: 19; 151).
Sobre essa questão, nunca é demais citar Marx, em O dezoito brumário de Louis Bonaparte: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstância de sua escolha, mas sob aquelas circunstâncias com que defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 2000: 15).

Autor: Carlos Batista Prado
Graduado em História pela Universidade Católica Dom Bosco.