segunda-feira, 14 de julho de 2008

Revoluções, paradigmas, futuro


Assisti Wall-E. O filme é bom, mas me assustou profundamente. Há meses não saía tão angustiado do cinema. É claro que a historinha cativa, os personagens são muito carismáticos e tudo mais; o que pode passar despercebido ao espectador é o aviso, que chega a ser sério demais. Outro dia me espantei: tinha saído no jornal on-line que já estava operando um barman robô em Londres. Não pensávamos em nada assim 15 anos atrás, a não ser se saído de um filme de sci fi. E hoje funciona. Sempre reparo na juventude que caçoa dos mais velhos e apresenta uma postura pouco compreensiva com o nem sempre tão almejável relacionamento deles com os avanços que estão a nosso alcance; há sempre um avô que se surpreende com uma tela touchscreen, e sempre alguém que não consegue imaginar as possibilidades do wifi. Se pensarmos mais pra trás, alguém que nasceu na década de 1930 numa família humilde e num país periférico poderia mesmo chegar a imaginar as maravilhas dos computadores - e isso pensando só num âmbito doméstico. E a inteligência artificial e, supõe-se, sua capacidade de se auto-desenvolver?

Ainda em relação ao filme, dois cenários são postos em oposição: uma nave-cidade com todo o conforto que se pode oferecer e uma Terra pós-apocalíptica consumida pelas toxinas do lixo ubíquo. O filme se passa no século XXIX, mas não me parece tão distante assim. Comentando o tópico, disseram-me algo: o futuro ideal dos sedentários com a tecnologia à mão não será alcançado pela humanidade, e, se chegar a acontecer, será péssimo. Ora, os personagens animados não parecem achar ruim enquanto, aparentemente, subordinam as máquinas à [ilusão de] sua vontade. De fato, não seria ruim. Quem não assistiu ao primeiro exemplar da trilogia Matrix? Lembram da traição que delatou Neo, Morpheu e os demais? Quem o fez, fê-lo porque não suportava mais a realidade em que vivia - era fria, em seus vários sentidos, e preferia trocá-la por uma realidade muito mais interessante: era um mundo similar ao em que vivemos, que o permitia saborear um pedaço de filé e ter um bom emprego. Qual a diferença entre um mundo e outro? Quase nenhuma. Os prazeres que sentimos, de comer a comer, são todos estímuulos aos sentidos que podem ser simulados, como experimentos mostram em ratos, se tivermos acesso ao hipotálamo e demais áreas e liberar correntes. Talvez a única distinção que possamos fazer é que no mundo de Morpheu (nome que, se remetido à origem, cai muito bem no caso), ele acha que está certo, e que aquelas são, efetivamente, as coisas em si; no mundo da Matrix, ninguém liga pra isso. (Várias analogias podem ser feitas a isso no contexto em que nós vivemos).

Será que vamos chegar a esse futuro? Não sei. O homem teme o desconhecido, e o homem racional, aquilo que ele não consegue estipular, prever, supor com base na razão. Temo o futuro: não há solidez que faça levar a uma resposta nítida. O desenvolvimento é levado a cabo até as últimas conseqüências pelo formato devorador do sistema atual, e poucos (ou não há) obstáculos para o avanço da ciência. A descoberta da energia nuclear - com pretensões, inicialmente, boas -, que levou à criação de duas bombas que assolaram o Japão e deram aos dois pólos do mundo na época uma ótima ameaça que manteve a humanidade em clima de guerra por décadas, ou seja, a desvirtuação da essência do seu uso, levou os físicos do mundo inteiro a recaírem numa crise ética. Os biogenéticos estão a um passo de vivenciar a própria: o progresso dessa ciência tem levado à descobertas inimagináveis como curas, clonagens e criação de superseres (que, pensa-se, seriam utilizados para coerção violenta) e subseres (que, pensa-se, seriam utilizados como escravos). A bioética surgiu, entre 1969 e 1970, com alguns autores, tendo a finalidade de propor modelos e análises que deveriam poupar os cientistas de ter de constantemente rever questões éticas à medida que progrediam e para criar uma uniformidade de âmbito universal. Os modelos que surgem e são propostos às ciências, como, em Capra, os modelos ecoéticos, talvez nos poupassem muita coisa. Talvez até nos poupasse das duas situações expostas no filme. Apenas talvez: os modelos são, tal qual o nome sugere, criações ideiais de como deveriam ser Se, e as conclusões são tomadas a partir daí. Nem todas as variáveis são ou podem ser levadas em consideração.

Pode ser tudo uma questão de mudança de paradigma e nós estamos bem no meio. O surgimento de pensamentos como o de Capra anunciam essa possibilidade. Voltando à questão dos nossos conhecidos de mais idade, alguns se acostumam, outros negam: há quem se recuse a utilizar um computador, não reconheça sua praticidade e leque de possibilidades. Esses são os que relutam em aceitar. Numa época de mudança, isso é sempre bem claro: há os que vão sendo levados pela mudança, há os que pensam além e procuram, esquematizando, prever, e há os que defendem, com unhas, dentes e teclas, as posições que são tidas como retrógradas. Exemplo claro é o da Revolução Francesa, que comportava os sonhadores que viam naquele princípio de mudança a possibilidade de idealização de modelos perfeitos, os revolucionários, que acompanhavam, com as armas, as mudanças, e os que, ferrenhamente, defendiam os valores e paradigmas feudais. E esses permaneceram por um bom tempo - não me surpreenderia encontrar relações quase feudais de trabalho ainda hoje. Nós somos a geração que acompanha o progresso, que interage com as máquinas maestralmente e que não entende os que não o fazem. A mudança de paradigma por que passa a ciência, a fuga do sistema newtoniano-cartesiano, representa, talvez, um avanço. Vai depender do que está por vir.

Mas e nós? Onde ficamos? No meio de tudo, com a ilusão de comandar máquina e vida, constância e mudança, exatamente no olho do furacão? Não consigo acreditar nisso. Só o que consigo ver no futuro é escuridão da incerteza e da iminente possibilidade da frutificação da semente de auto-destruição que a humanidade carrega em seu ventre. E será assim? Bem, daqui a alguns anos você pergunta de novo - (até lá, como alternativa possivelmente menos ruim, o leitor pode sonhar com o futuro preguiçoso no espaço exibido em Wall-E).

3 comentários:

Anônimo disse...

Excelente reflexão Phil. Apesar de não ter assistido ao filme ainda, rotulado por alguns como infantil, é engraçado perceber o paradoxo que se estabelece, pois um filme que exige tamanha tecnologia para ser criado (com altos custos) tenta nos fazer refletir sobre o futuro de uma humanidade cada vez mais sedenta por inovações tecnológicas e conseqüentemente por consumo.Até que ponto o que vivemos é de fato “progresso” e o que isso acarretará,é uma questão pertinente.
Em suma, gostei muito do texto e despertou-me a vontade de ir conferir o filme. :)

Kondlike disse...

Gostaria de observar que a fuga do sistema cartesiano não é necessariamente um avanço - a palavra 'mudança' ou 'transformação' representa melhor o que ocorre, deixemos as palavras 'avanço', 'superação' e 'progresso' para os positivistas (se ainda existirem).

Refletindo aqui, podemos ver como não confiamos na nossa própria raça, hehe. Esse paradigma ecológico vai encontrar eco nas atividades humanas? Acho que a resposta para essa pergunta pode ser decisiva para o futuro da humanidade. Talvez o ponto que nos livrará de termos um futuro como o de Wall-E seja esse, não sei.

Um paradigma surge quando um anterior não encontra mais efeito para sua função. É sempre como uma fênix: os modelos que levam ao conhecimento científico renascem nas próprias cinzas, na crise.

A humanidade não vai acabar com a terra, segundo penso. Nem com os recursos minerais. O homem se diverte com um suposto futuro apocalíptico, mas isso nunca vai ocorrer. Essa expectativa existe desde o futurismo, através do susto frente a essas novas invenções que desafiam nossos hábitos. A tecnologia se desenvolve para nos atender, e se nós temos medo de um futuro como o do filme, de que maneira acabaríamos como tal?

Essa foi uma reflexão suscitada pela postagem do meu caro amigo que, como sempre, escreve em um nível muito acima do esperado.

Engel disse...

Cogito ergo sum...