domingo, 1 de junho de 2008

Julgamento

“Afinal, o que eu estou fazendo aqui?”
O senhor era austero, gentil, bem vestido. Ar de quem sabia muito. Além disso, era bonito e rico. Ela? Uma moça de uma família de comerciantes. Não possuía dinheiro suficiente para ser rica, nem beleza o bastante para ser cobiçada. Alguns minutos de conversa, palavras complexas, agradáveis aos ouvidos. Ela aceitou um café. Por que não? Estavam num pequeno estabelecimento, discreto, e aqueles não eram mais outros tempos, onde uma moça e um homem sozinhos seriam mal-vistos. Mas havia algo estranho.
- Bem, como eu ia dizendo, o livro de Sir James George Frazer... – Ela pigarreou, sem saber bem o que fazia. Estava inquieta, e olhou fixamente para o homem.
- Hm... Senhor... – Agora que tinha começado, as palavras pareciam fugir-lhe a boca. Mas abanou a cabeça e decidiu ir em frente.
- Eu gostaria de saber quais são as suas intenções me trazendo para cá. – Ele pareceu surpreso com a pergunta, mas apenas pareceu, ela não podia confirmar sinceridade ali.
- Como assim, senhorita? Eu apenas quero conversar... – Ela levantou uma sobrancelha.
- E em que existência você pensa que eu vou acreditar que um homem quer “apenas conversar”? – Ele riu.
- Ah, mas eu quero apenas conversar. Embora, se você pensar bem, conversar jamais seja “apenas”. Conversas mudam vidas, sabia? – Ela relaxou um pouco, pelo modo incisivo como ele falou, talvez esse tenha sido o seu erro.
- E sobre o que você quer falar?
- É um passatempo meu passar a cultura adiante para os jovens. Veja bem, este quadro, atrás de você... – Ela se virou quase que instantaneamente, para se deparar com um enorme quadro em uma moldura dourada. Predominantemente composto de tons escuros, ele representava vários indivíduos sentados em volta de uma mesa. Sentiu arrepios, ao perceber que não o vira mesmo antes de sentar ali. – Ele representa uma passagem muito interessante.
- E qual seria?
- Antigamente, quando não havia liberdade como hoje, era comum a criação de ordens secretas. Sociedades de pessoas com interesses em comum, que se encontravam na calada da noite, para trabalhar em prol de seus objetivos.
- Esta era uma deles?
- Sim, era. Uma muito interessante, por sinal. – Ela inclinou-se um pouco para frente, curiosa.
- Eles possuíam um código moral e ético muito rígido. Mas o engraçado é que os membros não eram obrigados a cumpri-lo. Não, eles o usavam para julgar. Mesmo perante a mais leve suspeita de que uma pessoa estava de algum modo ferindo o seu código, seqüestravam-na e a levavam a julgamento.
- Como assim?
- Simples, eles sentavam-se numa mesa, junto com o indivíduo a ser julgado. Só que é uma piada falar nesses termos. O julgamento era sumário, ninguém escapava.
- E o que eles faziam quando consideravam alguém culpado?
- Torturavam por horas e horas a fio, e depois tocavam fogo, ou enforcavam.
- Mas isso não faz o menor sentido, senhor. Eles inventaram algo que não seguiam, mas julgavam e matavam os outros por isso?
- Resumindo, é.
- Mas... Por quê?
- Isso não é fácil de responder. Talvez fosse uma maneira de zombarem dos outros, mostrando como a bondade é na verdade inexistente, e aqueles que tentam segui-la cegamente não passam de iludidos sendo conduzidos ao abatedouro. – Nessa última sentença, o tom dele mudara em algo. Antes, parecia um professor lecionando uma matéria qualquer, agora, era mais complexo, mais profundo. Ele parecia se importar mais com o que falava.
Ela não percebeu que alguns outros homens sentaram-se à mesa. Um a um. Ela estava entretida demais com o homem que a levara ali.
- E quanto tempo faz que isso acontecia?
- Tempo é algo relativo, querida. Muito ou pouco, depende de como você encarar os fatos.
- Você poderia me contar mais alguns detalhes sobre eles?
- Bem, normalmente, os encontros sucediam-se em locais na penumbra, e a maioria dos membros da confraria já possuía alguma idade. – Ele parou um pouco. Foi o suficiente para que o encantamento dela por ele terminasse. Ela percebeu os demais indivíduos sentados à mesa. Senhores, bem vestidos, respeitáveis. Contou rapidamente o seu número e viu...
- Se você pesquisar bem, verá que eles se reuniam em um número específico. Claro, a vítima acrescentava mais um. – Ela escutou isso, e ficou estática. Não entrou em pânico, ousou apenas olhar aquele que a trouxera ali. A atenção de todos à mesa se concentrava nela. Não fez nenhum movimento no intuito de levantar-se. Tinha escutado um clique na porta quando entraram, mas não prestara atenção. Outro erro.
A essa altura, o homem já sorria, e perguntou, com toda a ironia que podia na voz:
- Querida, poderia me fazer um favor?
- O que seria? – A voz era trêmula, amedrontada.
- Poderia contar quantas pessoas estão representadas no quadro atrás de você?
Já sabendo o que a esperava, virou-se e contou rapidamente. Lógico que o resultado era igual ao outro que vira ainda pouco.
- São doze homens, sentados, e, além disso... – Uma jovem de cabelos castanhos e vestido azul, como ela.
- Treze, e em círculo.
Augusto Tavares
Esse foi o conto vencedor da I Competição Literária do Sarau. Parabéns ao autor!

4 comentários:

Kondlike disse...

Ficou ótimo.
Augusto surpreende, mesmo.

Ingrid B. Montenegro disse...

muito, muito bom, mesmo!

Como diria minha ex-professora de redação: "ele conseguiu prender a atenção do leitor", e eu completo dizendo que é capaz de fazer o leitor imaginar 'tudinho'. Vírgula por vírgula.

Anônimo disse...

Não imaginei que fosse de Augusto até ver a assinatura.
De fato, um ótimo conto.

Anônimo disse...

por um momento eu achei que era uma sátira da Igreja Católica. É uma descrição bem parecida. Aliás um conto muito bom