segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Do fim da Guerra Fria


Sem necessidade de lutar contra a crise social, o ocidente europeu passara a viver, entre as décadas de 1950 e 1960, uma inadvertida era de ouro, marcada pelo progresso econômico e relativa estabilidade. O mundo havia sobrevivido às ameaças de guerra dos anos anteriores, que passaram pela Revolução Chinesa e pela Guerra da Coréia. Houve, então, nesse lado da Europa, um afrouxamento da tensão. Para a diplomacia de então, criou-se o jargão détente para marcar a época, tendo sido apenas questionada no período turbulento entre 1960 e 1963, com a política externa do presidente norte-americano Kennedy, a Revolução em Cuba e a Crise dos Mísseis. Depois desse evento, houve um reconhecimento soviético-estadunidense sobre a necessidade não só de conter conflitos como a ameaça deles, que poderia vir a manter um estado freqüente de medo, tendo a enorme instabilidade como conseqüência – fator que sempre potencializou conflitos. Nesse contexto, passaram a ser feitos vários acordos nos anos seguintes, como tratados de não-proliferação nuclear e, ainda em 1963, a criação de uma “linha-quente” Casa Branca-Kremlin de Moscou.
A détente surgia para mostrar a falibilidade da lógica dicotômica propagada pela Guerra Fria, especialmente pelo lado estadunidense. No meio das possibilidades de ruínas e conflitos, de um mundo dividido, havia prosperidade. Fora concluída a construção do Muro de Berlim, que bem delineava as fronteiras entre os ditos dois lados do mundo, que, em suas diplomacias, haviam concordado em respeitar a fronteira e as respectivas áreas de influência de cada um. Porém, a década de 1960 e as seguintes mostra uma continuidade do processo fora da lógica dialética: séries de revoluções no Terceiro Mundo se sucedem. A luta ideológica passa, então, a se dar fora do cenário tradicional e figura no plano da disputa pela influência nesse “mundo mais fraco”, a mostrar a pouca abrangência da teoria dos dois campos – a mostrar um etnocentrismo ideológico e epistemológico, que, nessa época, trazia consigo em grande escala interesses políticos de um lado ou do outro. Mas, ainda assim, a competição se dava fora do plano central da guerra, o que já mostra significativas mudanças. A Guerra Fria falhou em tentar congelar um sistema de funcionamento estabelecido no pós-segunda guerra e prezar para que pudesse funcionar por sobre as mesmas estruturas em todos os anos subseqüentes, ignorando todas as mudanças instauradas no mundo. O exercício forçado de manter uma filosofia que não mais condizia à realidade mundial era desgastante.
Questiona-se post facto, o que, à época, então, fundamentava o discurso belicista, militarista, com seus tons apocalípticos. De fato, a presidência norte-americana, fundada sobre premissas ditas democráticas, precisava justificar sua política externa de caça às bruxas, uma espécie de cruzada anti-soviética (o que os fez, futuramente, aliar-se até à China comunista). O mesmo não se passava na cúpula da administração soviética. O discurso belicista era, então, predominantemente ocidental, fomentado pela busca do apoio popular. Mas a corrida armamentista nem tanto. A União Soviética investia altos recursos em tecnologia militar – bancando o custo sozinha –, bem como os Estados Unidos – que contava com todo o sistema capitalista para assegurar sua dívida externa altíssima. A corrida espacial – deslanchada pelos soviéticos – mostrava a disputa das duas superpotências no âmbito de soft power, mas também o desvio do plano de ameaças reais de conflito nuclear. O afastamento de Krushev, defensor da coexistência pacífica, da liderança soviética fez assumir Brejnev, líder particularmente otimista – caracterizando, por isso, na visão dos reformistas soviéticos, um período enorme de estagnação da URSS –, que achava salutar manter – ou aumentar – os investimentos bélicos na União Soviética para gerar confiança e estabilidade – bens virtuais – dentro do sistema comunista e fora, no sistema internacional, muito embora a própria URSS não fosse favorável ao conflito armado ou nuclear dentro da Guerra Fria, ciente da possibilidade iminente de destruição mútua. O otimismo de Brejnev também se deu nas crises do petróleo, que conferiram relevância ao Terceiro Mundo e valorizaram em quatro vezes as jazidas petrolíferas descobertas em territórios soviéticos na década de 1960. A aparente queda de influência norte-americana no mundo com o triunfo da Revolução Cubana e com derrota no Vietnã conferia ao sistema internacional certo quê de estabilidade. Teria sido um arrefecimento internacional dos moldes da Guerra Fria um dos fatores mais apontados para o fim da própria.
Desde o começo do embate, estava claro que era uma batalha de desiguais. A URSS fundamentava-se como grande centro – embora emergente – responsável por diversas áreas fundamentalmente fracas em desenvolvimento industrial, mas tinha de enfrentar os EUA, que exerciam grande influência em áreas já desenvolvidas do mundo, especialmente no ocidente europeu. O sistema financeiro internacional estava à disposição destes para bancar as dívidas feitas na corrida armamentista e especial que viria a acontecer, enquanto as repúblicas soviéticas tinham somente a si mesmas. Na década de 1980, o atraso começava a deixar suas marcas – ainda leves; o governo norte-americano sequer suspeitava da possível queda dos “inimigos” que justificavam sua política mundial – na URSS, que ainda era vista pelo lado ocidental como empenhada numa ofensiva global. Foi somente com Gorbachev na liderança soviética que foi possível uma mudança nesse sentido.
Diz-se que efetivamente acabou a Guerra Fria quando “uma ou ambas as superpotências reconheceram o sinistro absurdo da corrida nuclear”, o que já havia se dado, ao menos no lado soviético, há bons anos, e “quando uma acreditou na sinceridade do desejo da outra de acabar com a ameaça nuclear”. Gorbachev pôde reconhecer esse fato publicamente, com a diferença que, em sua área de influência, a Guerra Fria nunca apresentou um ideal de cruzada, mas num ideal globalista de luta contra o capitalismo, que se cria vir a ruir, e que, até o momento, não havia dado verdadeiros sinais de fraqueza. O presidente Reagan, nos Estados Unidos, em seu sincero idealismo e crença num mundo sem armas nucleares, acreditou no afirmado pelo líder soviético. Com as conferências de cúpula de Reykjavik (1986) e Washington (1987), foi dado, para fins práticos, o fim da Guerra Fria. Por outro lado, só é aceito, no mundo ocidental, o fim da guerra quando há, entre 1989 e 1991, o – pouco esperando – colapso da URSS, influenciado por e influenciando o fim da Guerra.


Um comentário:

Engel disse...

"O presidente Reagan, nos Estados Unidos, em seu sincero idealismo e crença num mundo sem armas nucleares, acreditou no afirmado pelo líder soviético."
Verdade? Creio que sim.
Agora,que é difícil de acreditar é.

No mais, excelente análise sobre um processo de tamanha importância na formação da atual sociedade.