sábado, 16 de agosto de 2008

A necessidade de reconhecimento do outro

O direito de cada um termina onde o do vizinho começa. Certamente não foi baseado nesse princípio que o Novo Mundo foi colonizado pelo Velho Continente. Mas é baseado num princípio de filosofia da história que afirmo que a lógica de funcionamento de todo sistema social enquadrado numa era difere completamente de outro somente por estar num contexto de outra era; e vivendo hoje numa era da vitória da democracia liberal, princípios kantianos e direitos humanos, não deveríamos cogitar o genocídio cultural. Se é função do Estado Logístico [1], além de outras coisas, que os acordos sejam cumpridos, voltamos ao primeiro princípio desse texto. Sendo assim, já não estamos sós: passa a nos ser obrigatório conhecer os limites dos direitos alheios - que, em conjunto, definirão o nosso próprio.

Cada ser vive, contudo, em busca de satisfação própria; não se pode nem deve crer que se possa viver em busca de um ideal de satisfação geral. Até a busca pela concretização do comunismo como ele é pra ser é uma busca de cada um por todos, mas, novamente, de cada um pra si, no sentido de que esse sistema visa a propiciar a cada um tudo aquilo que lhe é necessário e lhe apraz, permitindo a todos - mas principalmente a cada um - que possam ser quem são de fato. E não é esse, afinal, o princípio e o fim da existência em sociedade, garantir que possamos, individualmente, viver melhor e ter mais acesso ao conjunto das nossas satisfações? Para isso, vivemos num universo de concessões: só podemos ter ou fazer ou ser algo se deixarmos isso ou aquilo de lado.

Os tempos são de razão, ainda que positiva. Não cabe aqui julgar, cada um pode - e não seria mal que o fizesse - conceber suas idéias de justiça, contanto que não a execute por sobre as justiças alheias. É assim que a idéia de justiça - bem como outras idéias que permeiam, mesmo que não de maneira clara, a nossa (con)vivência - deixa de ser teoria (universal em essência e prática; visa ao bem geral; positivo) e vira conceito (particular; vinculado a um meio; assumidamente visando ao bem desse meio)[2]. A existência e, talvez e principalmente, o embate entre teorias e uniões de conceitos é inevitável, e útil no sentido de produzir conhecimento voltado para a prática. Assim, não é aceitável para a Lógica[3] que alguém, em busca de um ideal que é seu, dizendo-o maior e universal, romantizado, busque a realização dessa proposta, porque ela inevitavelmente passará por cima de outras propostas. As forças sociais respondem negativamente a toda tentativa similar. Idealizaram o Contrato Social, em que cada indivíduo cede direitos pela esperança de receber o que ele precisa de volta; e é o Estado, beneficiado das cessões de cada um, quem vai definir, em cada caso, o que é teoria, o que é conceito individual e o que é conceito de Estado, sendo a diferença entre os dois que o de Estado, por supostamente representar a sociedade, vale para todos e consegue abranger todo o universo do contexto em que foi produzido, e o individual, se fugir aos ditames do outro, é passível de punição.

Considerando o que já foi dito, não podemos falar que vivemos plenamente em sociedade ou plenamente em estado natural; esses são apenas - o que já é muito - dois níveis de análise; e, tomando um pouco de cada, somos seres aparentemente onipotentes, mas que, posto dessa maneira, dependemos da onipotência alheia - e que ambas estão sobre a onipotência real do Estado. Não é mais somente questão de força - na Lógica, somos aparentementes detentores de poder semelhante-, mas passa a ser uma questão de legitimidade, o que requer, antes de tudo, que respeitemos a questão do espaço de atuação de cada força[4]. Requer também, em seguida, que os demais poderes (demais pessoas; também representam o Estado) concordem com o que se propõe fazer (ou tenham concordado previamente). Deve-se lembrar que cada vez em que se legitima um ato, perde-se espaço no espaço de atuação do poder próprio, o que é feito em busca de um bem maior - a satisfação própria.

Tendo tudo isso em vista, o que sobra para cada um? Não tanto, mas o interesse inicial - o da auto-satisfação - permanece inteiro. Podemos dizer, então, que caminhar nesse sentido pode tornar-se uma corrida num campo minado no sentido de que é uma estrada que se deve seguir com bastante cautela; fica comparável a um jogo de xadrez pelo que requer de estratégia e concentração. Jogamos com essas forças - dos indivíduos que definem nosso direito, com a sociedade como um todo e como o Estado, força acima de tudo. Um ser que busca a plenitude própria não pode deixar de agir com ponderação e capacidade crítico-reflexiva porque ele está em constante clima de ameaça com as forças que o cercam - já que ele também contribui para definir os limites das outras forças - para poder aproveitar da melhor maneira possível o seu campo de possibilidades. Por fim, neste raciocínio, a Lógica não aceita exceções: tudo aquilo que foge ao que é estabelecido será posto à margem dos bens proporcionados pela vida em sociedade / sob um Estado. As forças sociais garantem que aquele que se marginalizar dos mecanismos sociais inevitavelmente perderá.

Fazendo rápida menção a outro ponto de vista, que também devemos tratar não como total, único ou certo, e sim como nível de análise, e se entendêssemos que nós, realmente, não nos sentimos atraídos por todas essas propostas? É algo que nos é passado desde a educação primária - saber se encaixar na sociedade para aproveitar o que ela tem a oferecer, ou que não o fazer nos traria prejuízos. É um raciocínio que se reproduz e enraíza. Percebe-se que a base de conhecimento de cada um advém da infância: desde o contato que tem com os pais até a influência (não absoluta) do meio em que viveu; se não fosse, entretanto, esse contato, o que seríamos? Como as duas meninas que, jogadas na selva, criadas no meio lupino, passaram a comportar-se como lobas. Podemos, também, então, dizer que vivemos em sociedade porque é a partir dela que não viramos um um com o mundo natural, e podemos passar a nos distinguir de maneira tripla: do meio natural, da sociedade e de nós mesmos, que passamos a ser capazes de nos reconhecer e repensar. A proposta, à medida que vamos envelhecendo, é que aumentemos esses graus de diferenciação, em movimentos especializadores, de modo a que aumenta, também, a nossa definição partindo da definição dos outros, em que tomamos para nós elementos dos vários outros para que sejamos um só. Nessa perspectiva, definimo-nos nos outros, ao menos parte de nossos traços, por interesse - que poderíamos até caracterizar como fetiche.

Para exemplificar, voltemos ao caso da colonização européia da América Latina. Isso será, em algum grau de intensidade, um processo de desconstrução de uma idéia que se defendeu até agora - o que me faz reforçar a idéia da não-completude de cada teoria, mas no seu bom encaixe como nível de análise - : não há, na verdade, um maniqueísmo em nenhum dos pares antitéticos levantados anteriormente; um se define e se completa no outro. Na historiografia, costuma se falar em uma sociedade conquistadora, marcada pelo massacre, e outra, indígena, marcada pelo sangue do sacrifício. Para esta, era aceitável fazer um sacrifício diário de um ser humano para que o sol nascesse no outro dia, o que é uma prática (reiterada) de reafirmação dessa sociedade específica enquanto diferente das outras. Para aquela, fazer sacrifícios para deuses era uma monstruosidade (auto-definição pela diferenciação), mas cometer genocídios físicos (matar pessoas) e genocídios culturais nos diversos povos (reafirmação) era o aceitável, o normal. Ainda assim, mesmo que não vejamos, nas narrativas tradicionais, nenhuma história de português que tenha passado a adorar Tupã, são inúmeras as histórias de europeus que largaram o que tinham pra tentar a vida na América Latina, sentindo-se atraídos pelo que a "nova" terra tinha a oferecer e chegaram a ajudar na criação de nações, aprendendo o idioma local e interagindo com os indígenas, como o caso de Inés de Suarez. No outro sentido, também os americanos (nascidos na América) que se interessavam pelo bens, pelos animais, enfim, pelo novo. É um jogo de sedução que tem mão-dupla. Dessa forma, passa a ser do interesse individual o relacionamento com o outro porque isso traz coisas novas para as partes. E, ainda no exemplo dado, são discursos de laços fortes que se repetem, de europeus que manifestam pulsante vontade de vir à América Latina (se) conhecer.

De maneira similar a tudo o que foi demonstado, funciona o jogo de relações entre os Estados. Consideramos apenas que os níveis de análise (chamemos de imagens) passam a ser o de anarquia e sociedade internacional e que não são regidos por um órgão supraestatal[5]mas concessões são feitas entre os Estados para a criação de normas de direitos humanos, direito internacional e o bom funcionamento de influentes organizações internacionais (sem querer mencionar o Conselho de Segurança da ONU). As teorias procuram fundamentar aspectos que deveriam funcionar para todas as realidades, e os conceitos são os formuladores de políticas exteriores e externas; os Estados têm de respeitar os acordos firmados e, enquanto soberanos interna e externamente, têm, teoricamente, o mesmo peso em decisões, de modo a que um não possa se sobrepor aos conceitos dos outros. Tendo todos esses percalços em vista, a diplomacia - que falta nas relações interpessoais - existe pra ,entre outras coisas, diminuir os atritos do lado do seu país-mãe (que ajuda a definir quem ele próprio é). Os Estados precisam fazer planos pela busca dos seus interesses que levem em consideração todos os outros Estados, que ajudam a definir seu próprio espaço de atuação. Que nem a Rússia, que não considerou a soberania (garantia de autonomia) da Geórgia, e dos EUA, que aspiram à delegacia do mundo. E do mesmo modo que atuam as forças sociais para punir os que fogem ao sistema, todos os Estados com pretensões hegemônicas começam a juntar inimigos demais, o que, inevitavelmente, levaria a seu fim. É por isso que dizem que todo império perecerá. É isso.



[1] Estado Logístico é, dentro do paradigma neoliberal, aquele que não funciona exatamente como um welfare state, gerenciando mais fortemente e provendo serviços, mas aquele que deve conduzir (auxiliar) a sociedade na busca de seus interesses e satisfação, o que justifica, dentro dessa corrente, a existência de um Estado que não seja nem mínimo nem interventor demais.
[2] A existência e, talvez e principalmente, o embate entre teorias e uniões de conceitos é inevitável, e útil no sentido de produzir conhecimento voltado para a prática.
[3] Entende-se Lógica, com a maiúscula alegorizante, nesse texto, como a lógica de funcionamento do atual sistema.
[4]Devemos entender espaço de atuação de cada força como a amplitude do direito de cada um.
[5] Essas relações interestatais estariam, no equivalente humano, na fase de organização social anterior à criação de um Estado, já que estão ainda engatinhando, de tão jovens (têm como marco inicial o ano de 1648).

5 comentários:

Kondlike disse...

Houp!
"É isso" soou como "Eureka". :P
Me parece que o texto é bem sóbrio, com preceitos lógicos bem sólidos e resolvidos.
Só chamo atenção para o conceito resumido de soberania. Embora seja de se entender que pra quem é leigo a definição já é satisfatória - e quem não é não precisa de definição, já sabe.

Engel disse...

Egito, Roma Ocidental e Oriental...
É, faz sentido. Muito sentido.
Excelente texto. ^^

viniciusdss disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
viniciusdss disse...

Triste do homem que não se dedicar a ser "outsider" pelo menos por alguns minutos do seu dia.


Ótimo texto. Prefiro não tecer minhas críticas aqui. Quando tiver mais tempo, eu analiso mais cautelosamente sua obra, companheiro.

Desculpe a minha demora. Minha rotina me consome.

abraço.

Anônimo disse...

Olá, Philipe!

Finalmente consegui um tempinho para ler o seu texto. Achei interessante e merece umas discussões mais pormenorizadas em outra ocasião mais oportuna.

Um abraço e até a próxima

Gabriel